Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli
A Igreja e a Pedra: território de devoção
A denominação dada ao Morro da Conceição deve-se à primeira edificação construída no seu cume em 1634: uma capela idealizada por D. Maria Dantas, viúva herdeira das terras, em homenagem à santa de sua devoção. Em 1655, D. Maria Dantas doou à Ordem do Carmo a capela e as terras do entorno para a construção de um convento. Os carmelitas, no entanto, repassaram em 1659 a posse para os monges capuchinhos franceses iniciarem a construção do que veio a se tornar, várias décadas depois, o Palácio Episcopal.
Nos fundos do Palácio Episcopal, encontra-se uma parte das instalações da primitiva Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, construção iniciada em 1713 – dois anos após a ocupação do Rio de Janeiro pelos corsários franceses. A fortaleza serviu de arsenal, quartel, depósito de material bélico, sede de serviços administrativos e, hoje, preservada em parte na sua estrutura colonial, a antiga Fortaleza da Conceição, em conjunto com o Palácio Episcopal, abriga o Museu Cartográfico do Serviço Geográfico do Exército.
No alto do morro, situa-se também o Observatório do Valongo, criado em 1881 como Observatório da Escola Politécnica da Universidade do Brasil, que funciona até os dias atuais como centro de apoio à formação de pesquisadores e sede do curso de Astronomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na encosta voltada para o Centro, encontra-se um dos principais marcos do plano urbanístico de Pereira Passos para modernizar a região portuária: o Jardim Suspenso do Valongo, projetado pelo arquiteto paisagista Luis Rey segundo moldes dos jardins românticos ingleses, inaugurado em 1906.
O Morro da Conceição é parte integrante do bairro da Saúde, além dos monumentos sobrados de feição portuguesa e povoado por memórias da cultura afro-brasileira, principalmente na área em torno da Pedra do Sal e do Largo João da Bahiana. Nas encostas do Morro da Conceição voltadas para o lado da Baía de Guanabara e com acesso principal pelo Largo São Francisco da Prainha, instalaram-se, no início do século XIX, alguns dos primeiros colonizadores portugueses, atraídos pelas possibilidades de trabalho oferecidas no cais do porto.
Nas franjas do morro, foram se alojando, principalmente no período 1850-1920, alforriados, moradores expulsos pelo governo de cortiços e cabeças de porco, mas também escravos fugidos. Favorecidos pelo significativo aumento do número de “escravos urbanos” – isto é, aqueles que trabalhavam em tarefas domésticas e de rua – ocorrido a partir de 1808, muitos “escravos fugidos” de áreas rurais se misturavam à multidão que circulava, barulhenta, nas movimentadas ruas do Centro da cidade. Tornavam-se assim invisíveis, pois era difícil identificar quem era escravo cativo, forro, livre ou fugido.
Muitos desses fugitivos eram acolhidos nessa comunidade, onde a rede de solidariedade tornou possível a convivência entre várias e diferentes etnias. A presença dos africanos ocidentais de origem nagô foi significativa para a gestação da cultura popular da cidade do Rio de Janeiro. Tal tradição, somada ao legado da África Centro-Ocidental (Congo-Angola), segundo o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares,14 foi a de maior influência na formação da chamada Pequena África, mas, além delas, muitas outras nações coabitaram a região portuária. O lugar era visto e vivenciado pelos africanos como uma possibilidade de recriar sua terra natal.
Gostais da África? Ide, pela manhã, ao mercado próximo do porto. Lá está ela, sentada, acocorada, ondulosa e tagarela, com seu turbante de casimira, ou vestida de trapos, arrastando as rendas ou os andrajos. É uma curiosa e estranha galeria, onde a graça e o grotesco se misturam. Povo de Cã debaixo da sua tenda. Há também negras vendedoras, matronas do lugar, patrícias da manga e da banana, com seu rosário de chaves. Essas damas mercadoras têm seus escravos que lhes arrumam as quitandas, vigiam, vendem ou vão colocar seus grandes cestos nas esquinas das ruas frequentadas, tentando a curiosidade do passante. (...) A segunda classe de quitandeiras não tem mais que um tamborete e um tabuleiro sobre estacas e debaixo de um toldo, nas horas de muito sol. Algumas são graciosas, pelo turbante, pelo xale que flutua, pelos dentes, olhos vivos e profundos, talhe esbelto e flexível, o olhar pesquisador e a chinela que arrasta. Graça, indolência, por vezes porte de rainha, é o que se encontra nessas filhas das Minas e da Bahia. Mais tipo oriental do que africano.15
O principal acesso à comunidade do Morro da Conceição se dava por uma formação rochosa de encosta lisa e escorregadia que ficava no sopé do morro onde atrai a atenção uma estreita escada toscamente esculpida na pedra por trabalhadores escravizados. Conhecido como Quebra-Bunda, depois denominado Pedra da Prainha e hoje conhecida como Pedra do Sal, o local tornou-se um dos maiores símbolos da cultura negra, marco consagrado como testemunho secular da africanidade brasileira.
No início da ocupação da região, essa formação rochosa funcionava como barreira contra o avanço das águas da Baía de Guanabara nas horas de maré cheia. Alguns dos antigos moradores atribuíam o nome Pedra do Sal à alta salinidade da água da Baía de Guanabara em outros tempos. Diziam que, depois da maré alta, a pedra, antes banhada, secava sob o sol, criando sobre ela uma crosta de sal. Outros depoimentos são diferentes: como no passado a orla da baía chegava até a pedra, era a partir dela que se estendia o trapiche por onde eram desembarcados os sacos de sal.
No entanto, por ali passavam não só o sal, mas também os mais diversos gêneros alimentícios trazidos em barcaças do fundo da baía para prover a cidade; e, durante o ciclo do açúcar, era local de embarque do principal produto de exportação que à época movia a economia brasileira.
Independente das divergências quanto à origem da denominação, o fato é que a Pedra do Sal assumiu uma importância única, pois foi considerada testemunha física de um passado nem tão remoto de luta e de resiliência dos costumes e das crenças de afrodescendentes, e integra, hoje, a lista de patrimônio cultural da cidade.