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Maria Pace Chiavari


Sopra novo ar no bairro da Gamboa: o porto, o Moinho e a Praça da Harmonia


Vista da cidade do Rio de Janeiro e do Moinho Fluminense antes da construção da Praça da Harmonia, final do século XIX. Foto de Marc Ferrez. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Vista da cidade do Rio de Janeiro e do Moinho Fluminense antes da construção da Praça da Harmonia, final do século XIX. Foto de Marc Ferrez. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

Desde o início do século XX, a área em volta do Moinho Fluminense se torna objeto de novo interesse. Importantes reformas urbanas são o resultado do plano de aterro relacionado à reforma do porto do Rio de Janeiro, anunciado no pronunciamento de Rodrigues Alves ao ser eleito presidente da República, em 1902. Na faixa destinada à construção do cais, que vai desde o Arsenal de Marinha até o Canal do Mangue, é incluída a área litorânea do Moinho.67 Os 170 hectares da nova linha da costa são construídos a partir da demolição do Morro do Senado, possibilitando a instauração do cais do porto da Gamboa.68 Tais obras, além de darem prestígio e mais infraestrutura ao Moinho Fluminense, oferecem terrenos úteis para futura expansão em função do maior afastamento produzido entre o estabelecimento e o mar.69

A convivência com essas áreas então alagadas inicia na época da construção do Moinho Fluminense, quando ele tinha, como vizinhos, um grande cortiço e a Praça da Harmonia.

É peculiaridade da área da Gamboa, onde está situada a praça, se apresentar, desde o século XVII, como lugar de grande mobilidade. Naqueles tempos, as atividades portuárias do tráfico transatlântico se cruzavam com as do cativeiro africano; em tempos mais recentes, foram substituídas pelo ingresso da mão de obra imigrante. O reconhecimento da vocação natural desse espaço acontece quando o Rio de Janeiro se torna capital da colônia, sede do Vice-Reinado de Portugal. A partir desse momento, se intensifica o processo de urbanização dessa região. Ao ser integrado à cidade, num primeiro momento, o espaço de convívio assume o nome de Largo da Saúde, em função do morro homônimo onde domina a igreja de Nossa Senhora da Saúde. Com os sucessivos aterros de áreas alagadas e a divisão de chácaras em lotes urbanos, o dito Largo vai se ampliando até assumir a forma da Praça da Harmonia. A proximidade ao mar e as atividades mercantis conexas ao transporte do café fazem com que tal logradouro seja escolhido, em 1855, para abrigar o segundo mercado municipal, após o da Candelária, ao qual é dado o nome da própria praça, Mercado da Harmonia.

O mercado exerce a função de agente conformador do espaço urbano. E a área de ar bucólico, lembrada por Machado de Assis, se presta para o encontro e passeio dos moradores. Ao longo dos anos, todavia, o clima vai se deteriorando. A demonstração disso é o fato de parte do mercado ser ocupada por pessoas que ali passaram a morar. Embora, desde a metade do século XIX, as áreas de plantação então remanescentes tenham se transformado em lotes residenciais, o grande afluxo de população na procura de moradia a baixo custo muda a fisionomia do lugar. Ao se referir ao início do século XX, Sergio Lamarão afirma que “a construção do novo porto foi o eixo, a base de uma ampla operação de renovação urbana”, mas prossegue observando que “as obras foram responsáveis por uma certa especialização espacial no interior da própria área”.70

São resultados dessa operação a destruição de barracos e casarões e a redistribuição dos lotes. Como acontece pela remodelação do Centro da cidade, a população expulsa procura se refugiar nos bairros da Saúde, da Gamboa e do Santo Cristo.71 Durante a administração do prefeito Barata Ribeiro (1891-1893), o Mercado da Harmonia é definido como “cortiço perigoso para a saúde pública” e condenado à destruição.72 Tal ato, realizado em 1900, não elimina a importância que a Praça da Harmonia tinha assumido durante esses anos de sua movimentada vida social, como elemento significativo na história da formação desse espaço. Pelo contrário, o logradouro fortalece sua atração como lugar de troca de diferentes camadas da população que se estabeleceram na área ao longo dos tempos.

Essa sua peculiaridade se manifesta, em 1904, por ocasião da Revolta da Vacina, motivada pelo decreto que impunha a vacina obrigatória. Nessa ocasião, insatisfeita com as duras condições de vida e de trabalho, a população cria barricadas e trincheiras, com a participação massiva de estivadores e trabalhadores dos estaleiros da área portuária, fazendo dessa praça seu quartel-general. Entre os revoltosos, destacou-se Horácio José da Silva, que, além de estivador, era capoeirista residente na zona do porto e denominado Prata Preta. Nele se inspirou o grupo de Carnaval Cordão da Prata Preta.73 Aproveitando-se, também, das ruínas do antigo Mercado da Harmonia, os revoltosos resistem durante dias, até que são derrotados pelas tropas federais. Desse evento, o Moinho Fluminense não participa diretamente como ator, mas assiste, também pelo fato de os rebeldes terem erguido as barricadas nas suas portas. Anos antes, da mesma forma, a Praça da Harmonia assistira à Revolta da Armada, quando o Moinho Fluminense tinha sido objeto de tiros. Entre atores e espectadores, cria-se um diálogo que permanece no tempo.

Enquanto o governo investe na renovação do porto, a área da cidade é objeto de planejamento do prefeito Pereira Passos. Para este, os critérios utilizados para remodelar a capital do país deveriam se adequar às exigências do modo de produção capitalista, respondendo às necessidades da moderna economia. É o caso das soluções tomadas acerca das antigas instalações do Mercado da Praça da Harmonia,74 do Mercado da Candelária75 e do Mercado da Glória, por esses não se adequarem às novas demandas no que se referia à higiene e à estética, além da circulação de mercadoria.76

É interessante lembrar o projeto da fachada do Mercado n°1, relacionado à Praça da Harmonia, de autoria de Adolpho Moraes de los Rios e assinado em 1903. Pela prestigiosa autoria desse projeto, percebe-se o importante papel então atribuído a essa praça em relação à área portuária e à própria cidade.77

Além de superpor quatro andares ao prédio baixo que dava frente para a Rua da Saúde, o Moinho expandiu suas instalações por sobre as áreas do aterro, 1913. ACERVO MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGEPraça da Harmonia, 1913. Foto de Augusto Malta. ACERVO MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
I. Além de superpor quatro andares ao prédio baixo que dava frente para a Rua da Saúde, o Moinho expandiu suas instalações por sobre as áreas do aterro, 1913. ACERVO MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
II. Praça da Harmonia, 1913. Foto de Augusto Malta. ACERVO MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE


Justifica a inviabilidade dessa construção o fato de ter sido aprovado o projeto do Mercado Municipal da Praça XV, primoroso exemplo da moderna estrutura de ferro pré-moldado. No âmbito das diretivas da Reforma Passos, obedecendo ao interesse em reintegrar a área portuária às áreas centrais da cidade, em 1911, o prefeito Barata Ribeiro decide recuperar o espaço antes ocupado pelo antigo mercado e transformá-lo numa moderna praça urbanizada, dotada de coreto e jardins à francesa. No processo de remodelação, está presente, talvez, a intenção de apagar materialmente qualquer memória que ligasse a praça ao seu passado como lugar de resistência. Comprova tal hipótese o fato de se erigir em volta da praça renovada o Quartel da Marinha, que deu origem ao 5° Batalhão da Polícia Militar. Durante a ditatura militar, o nome glorioso e histórico de Praça da Harmonia é substituído por Praça Coronel Assumpção, embora seja, ainda hoje, comum ouvir a população local se referir a ela com o antigo nome. No centenário do Moinho Fluminense, em 1987, a praça torna-se objeto de nova restauração, por iniciativa da própria diretoria do Moinho, talvez como reconhecimento de uma antiga e amigável vizinhança. Hoje equipada com um ponto das estações do VLT, o antigo logradouro continua a sua vida em permanente conflito entre as pessoas em situação de rua, que ocupam o coreto da praça, e os que fazem uso dela para lazer, caminhada, jogos de dama, festas, desfile de Carnaval, entre outros. Seu futuro é ainda incerto. Novas perspectivas talvez possam surgir da estratégia de requalificação adotada pela área portuária. A essas se conectam, também, as iniciativas do próprio Moinho Fluminense, cuja ligação com seu entorno é documentada pelas numerosas imagens fotográficas onde parece se estabelecer um diálogo entre a prestigiosa fachada do estabelecimento e o antigo logradouro.

Vista geral do Moinho e de seu entorno em meados dos anos 1930. Foto de M. Rosenfeld, 1936.Vista do Parque Industrial da região do porto, incluindo o Moinho e a Praça da Harmonia, em 1952. Foto de Carlos Botelho. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
II. Vista geral do Moinho e de seu entorno em meados dos anos 1930. Foto de M. Rosenfeld, 1936.
III. Vista do Parque Industrial da região do porto, incluindo o Moinho e a Praça da Harmonia, em 1952. Foto de Carlos Botelho. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE



67. BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Hausmann Tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1982.
68. ANDREATTA, Verena; CHIAVARI, Maria Pace; REGO, Helena. O Rio de Janeiro e sua orla: história, projetos e identidade carioca. In: INSTITUTO MUNICIPAL DE URBANISMO PEREIRA PASSOS (IPP). Coleção Estudos Cariocas. Rio de Janeiro: IPP, 2009.
69. ROSA, Francisco Ferreira da. Memorial do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura do Distrito Federal, 1951. p. 256.
70. LAMARÃO, Sergio Tadeu de Niemeyer. Dos trapiches ao porto: um estudo sobre as áreas portuárias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes. Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural. Divisão de Editoração, Biblioteca Carioca, 1991. p. 13-14.
71. TURAZZI, Maria Inez. Rio, um porto entre tempos. Modo de ser, modos de conhecer. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2016. p. 116.
72. CARDOSO, Elizabeth Dezouzart et al. Saúde, Gamboa, Santo Cristo. Rio de Janeiro: João Fortes Engenharia/Editora Index, 1987. (História dos Bairros)
73. ANDRADE, Vanessa de Araújo. A Reforma Pereira Passos (1902-1906): a memória da escravidão e algumas implicações sociais e raciais. Mosaico, v. 9, n. 15, 2018.
74. O Mercado da Praça da Harmonia foi inaugurado em 28 de janeiro de 1857 e demolido em 7 de agosto de 1900.
75. Projeto do arquiteto Grandjean de Montigny, localizado na Praia do Peixe.
76. FRANÇA, Carolina Rebouças; REZENDE, Vera F. O desaparecimento do Mercado Municipal Praça XV, fator na formação do espaço público da Cidade do Rio de Janeiro. In: I ENARPARQ, Rio de Janeiro, 29 nov. a 3 dez. 2010. Disponível em: <http://www.anparq.org.br/dvd-enanparq/simposios/195/195-350-1-SP.pdf>. Acesso em: mar. 2021.
77. Arquivo da Cidade. Praça da Harmonia. Fachada projeto Adolpho Moraes de los Rios, Rio de Janeiro; 6/1903. (M3/G8/3 R.301) Planta do Mercado (3/83).3.