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Maria Pace Chiavari


O empresário e o construtor: a concepção do Moinho Fluminense


Sobre o encontro entre o empresário Carlos Gianelli e o construtor Antonio Jannuzzi, poderiam se levantar várias hipóteses. Na segunda metade do século XIX, o Brasil apresenta aos dois personagens que desembarcam, em datas próximas, no Rio de Janeiro, um cenário político, econômico e social não tão pacífico quanto a imprensa oficial pretendia fazer crer. Junto à assinatura em pleno regime monárquico do Manifesto Republicano de 1870, são aprovadas medidas voltadas a favorecer a entrada de estrangeiros, na previsão do fim próximo do trabalho escravo. O poder pretende mudar de mãos.

O que acontece no Brasil concentra-se no Rio de Janeiro. Com a decadência da velha aristocracia e a partir das riquezas acumuladas pelo cultivo do café, surge uma nova classe interessada na modernização do país, a começar pela sua capital. Fazem parte desse grupo seleto Carlos Gianelli e Antonio Jannuzzi, atraídos pelo interesse em modernos investimentos aparentemente promissores.

Durante o Ressurgimento e, também, depois da unificação da Itália, ondas de italianos haviam chegado à América fugindo dos conflitos na península.17 Assim, a história americana da família de Carlos se inicia na primeira metade do século XIX. Nessa época, o processo de desenvolvimento socioeconômico da Ligúria, região do Norte da Itália, induzia grande parte da população a abandonar o trabalho no campo. Devido à antiga tradição marinheira dessa terra próxima ao mar, eram comuns conversas sobre a Argentina, o Uruguai e o Brasil, onde viviam conhecidos.18

Giacomo Gianelli nascera em 1820, na cidade Castiglione Chiavarese, numa família de moleiros. Até hoje, lá existe a padaria Antico Panificio Gianelli, onde se pode apreciar o pane buono. Movido pela vontade de levar vantagem a partir de seus conhecimentos na área da moagem, ele decide emigrar, com o irmão Cristoforo, para a Argentina. Chegados na América, os dois irmãos vão traduzir respectivamente seus nomes para Santiago e Cristóbal. Em Buenos Aires, o moleiro investe num moinho próprio e se casa com Carlotta Oneto, também filha de moleiro italiano. Em 1849, o casal se muda para o Uruguai.19 Dois anos depois, eles têm seu primeiro estabelecimento em Montevidéu: Molinos Gianelli. Vinte anos se passam, e a ideia de modernizar a empresa motiva Gianelli a viajar para a Itália, de onde traz novos maquinários e equipamentos. Os Molinos Gianelli conquistam prêmios nas exposições de Londres (1862), Paris (1878) e Barcelona (1888), onde os produtos são apresentados. Tais reconhecimentos e a boa situação econômica estimulam o empreendedor a expandir suas atividades de forma a abranger outros mercados da América do Sul. Como o capital investido é de origem familiar, na governança dos novos moinhos impõe-se, como condição necessária, que a gestão seja atribuída aos filhos.

No âmbito do ambicioso projeto de Santiago Gianelli de construir o primeiro moinho do Brasil, insere-se a vinda de Carlos Gianelli, em 1880, para o Rio de Janeiro. No currículo do jovem recém-chegado, junto à experiência adquirida em Montevidéu na firma familiar, há conhecimentos técnicos aprendidos no período de estudos na Inglaterra. Pouco tempo depois, desembarca no Rio de Janeiro Leopoldo Gianelli, para associar-se ao irmão na administração do novo moinho.20

Antonio Jannuzzi desembarcara pouco antes. Nascido em 1855, em Fuscaldo, cidade na região da Calábria, desde garoto aprendera com o pai, Fioravante Jannuzzi, a trabalhar a pedra. Fioravante era um “scalpellino”, ou seja, modelava a pedra de forma artística, esculpindo arcos e portões. No âmbito do projeto migratório decidido pela própria família, Antonio e o irmão Giuseppe foram escolhidos para ir, em 1872, para Montevidéu. Ali já estavam estabelecidos seus tios maternos.21 Passou-se um ano, porém, sem que Antonio encontrasse algo de seu interesse no mercado da construção. Transferiu-se, então, por conta própria para o Rio de Janeiro.

Muito provavelmente, o Rio de Janeiro foi o lugar de encontro entre o empresário e o construtor. Podem ter se conhecido através da comunidade italiana local ou pelo fato de pertencerem à mesma classe social em ascensão na capital do país e, assim, frequentarem os mesmos ambientes. De qualquer modo, o Rio de Janeiro oferecia incentivos para a instalação de indústrias, na busca de propostas e soluções para que a capital se renovasse após frequentes epidemias. Esse clima foi o estímulo para nossos personagens realizarem um projeto juntos.

Elegância e cultura caracterizavam o primeiro, enquanto exuberância, inteligência e perseverança, esta última devida talvez à sua formação religiosa valdense, eram as armas do segundo.22 O espírito empreendedor, por certo, estava em ambos. Graças à moderna visão e à disponibilidade de investimentos, o plano elaborado pelo patriarca Santiago Gianelli seria concretizado no Moinho Fluminense.

No alinhamento entre o projeto industrial e a arquitetura do conjunto, encontra-se a chave para o sucesso do empreendimento. E isso foi possível graças à harmonia de pensamentos e atitudes existentes entre os dois principais atores. A existência desse permanente diálogo entre os dois italianos – nem sempre explicitado – se revelou por ocasião da Revolta da Armada, em 1893.

Durante o conflito, o Moinho Fluminense foi atacado, tendo seus equipamentos e edificação atingidos, além de impedida a circulação de produtos. Para justificar, é levantada a hipótese da relação de Carlos com personagens pertencentes à oposição ao governo. Liderado pela Marinha, tal prestigioso grupo antagônico à política do presidente Floriano Peixoto tinha, entre seus apoiadores, Rui Barbosa. Na ocasião da Revolta da Armada, aliás, Barbosa usou o Moinho como esconderijo, antes de embarcar em exílio para Buenos Aires. Nessa mesma ocasião, Antonio Jannuzzi elevou uma falsa parede na sua casa, em Santa Teresa, para esconder o amigo José Carlos Rodrigues.23 Tratava-se do proprietário e diretor do Jornal do Commercio, procurado pela polícia por sua manifesta oposição ao governo de Floriano Peixoto.24



17. FONDAZIONE CASA AMERICA (Org.). Migrazioni liguri e italiane in America Latina e loro influenze culturali. Roma: Aracne, 2005. p. 78.
18. Idem, p. 82.
19. FONDAZIONE CASA AMERICA (Org.). Dizionario storico biográfico dei Liguri in America Latina da Colombo a tutto il Novecento. v. 1. Ancona: Affinità Elettive, 2006. p. 244.
20. Disponível em: <https://www.geni.com/people/Carlos-Gianelli-Onetto/296342454250004854>. Acesso em: mar. 2021.
21. Os tios maternos pertencem à família Seta. Idem, p. 64.
22. Na Calábria, existem comunidades religiosas valdenses. Os valdenses pertencem à mais antiga igreja protestante italiana surgida antes da Reforma, no século XII, e têm origem no movimento considerado herético de Pietro Valdo (Lyon, 1140-1206). No continente americano, os valdenses se aproximaram das comunidades presbiterianas, como fez no Brasil Antonio Jannuzzi.
23. José Carlos Rodrigues (1844-1922) foi proprietário e editor-chefe do Jornal do Commercio de 1890 a 1915.
24. FOGLIANI, G. Monografia dei lavori eseguiti dalla ditta Antonio Jannuzzi e Fratelli, architetti costruttori in Rio de Janeiro, Brasile. Milão: Stabilimento Tipo-Litografico-Cartoleia Maglia, 1905.