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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


A Pequena África


Dança. Heitor dos Prazeres, 1965. ACERVO COLEÇÃO MAM SP, DOAÇÃO IRACEMA ARDITI. FOTO DE ROMULO FIALDINI
Dança. Heitor dos Prazeres, 1965. ACERVO COLEÇÃO MAM SP, DOAÇÃO IRACEMA ARDITI. FOTO DE ROMULO FIALDINI

Foi Heitor dos Prazeres (1898-1966), um compositor, cantor e artista plástico brasileiro que retratava a vida boêmia e a cultura dos morros cariocas, quem introduziu o termo Pequena África para qualificar a zona portuária do Rio de Janeiro como o berço das tradições afro-brasileiras e do samba na cidade.

A delimitação do território da Pequena África é envolta por inúmeras controvérsias, mas pode-se afirmar que o principal reduto da cultura africana no Rio de Janeiro dos séculos XVIII ao XX se concentrou principalmente nos bairros da Saúde e da Gamboa depois que grandes obras de urbanização da cidade, ao longo do século XX, acabaram por subtrair deste grande conglomerado de memória africana a importante região da Cidade Nova, mais ao norte.

Estes dois bairros, de um lado, guardam aspectos marcantes da presença cultural afro-brasileira no local, recheados de histórias sobre as religiões de matriz africanas, a origem do samba e a vida boêmia de seus compositores, que enchem de orgulho os cariocas; e, de outro, mostram perturbadores registros que trazem à luz tristes fatos ocorridos na diáspora africana.

Após a Abolição, ocorreu uma intensa migração de escravizados baianos em direção à capital federal. No entanto, a cidade não oferecia aos escravos libertos alternativas de vida para sua nova condição social. Por essa razão, as primeiras levas de imigrados instalaram-se onde a moradia era mais barata e onde havia procura por mão de obra braçal, ou seja, próximo ao cais do porto. Instalaram-se inicialmente em áreas entre a Praça Mauá e São Cristóvão, originando na zona da Praça Onze os primeiros encontros do samba de partido alto.

Em torno das casas de zungu – locais de preparação das refeições com angu e outros quitutes culinários –, os trabalhadores não só comiam, mas principalmente realizavam confraternizações coletivas, por meio de música, celebrações, candomblé e rituais de diversas origens. Entre as mulheres, havia as chamadas “tias baianas”, como Tia Bebiana, Tia Perciliana, Tia Obá e Tia Ciata, esta última a mais conhecida moradora da Rua Visconde de Inhaúma, na vizinha Praça Onze. Essas tias alcançaram destacado status social em suas comunidades não só pelo papel por elas desempenhado na preservação das religiões afro-brasileiras, mas principalmente por criarem importante rede de acolhimento entre os negros brasileiros e os recém-chegados. O poeta Manuel Bandeira cantou:

Dom João VI plantou quatro renques
de palmeiras-imperiais
Casinhas tão térreas onde tantas vezes meu Deus
fui funcionário público casado com mulher feia
e morri de tuberculose pulmonar
Muitas palmeiras se suicidaram
porque não viviam num píncaro azulado.
Era aqui que choramingavam
os primeiros choros dos carnavais cariocas
Sambas da Tia Ciata16

Mesmo sendo fortemente reprimidas, as casas de zungu conseguiram resistir, mantendo viva a cultura africana. Nos terreiros das tias, podiam ser realizados rituais de culto aos orixás, festas de candomblé e rodas de choro. Ali nasceram os ranchos, os cordões e o carnaval carioca, absorvendo até formas rurais do samba introduzidas por representantes das nações iorubá, bantos e sudaneses alforriados do Vale da Paraíba e da Bahia.

Mais tarde, as rodas de samba do bairro passaram a ser frequentadas por sambistas de renome, patrimônios do samba, entre eles Pixinguinha, João da Baiana, Donga, Hilário Jovino e Heitor dos Prazeres, entre muitos outros, perpetuando ali uma efervescência musical ligada às tradições da música popular negra. O lugar assumiu grande carga religiosa como espaço de oferendas, remetendo à forte presença do Candomblé na região. O terreiro do pai de santo João Alabá de Omulu é considerado o candomblé seminal da Pequena África.

Junto do Instituto dos Pretos Novos (IPN), já existia o Afoxé Filhos de Gandhi, contemporâneo do afoxé baiano, o mais antigo do Rio em atividade; alguns mestres de capoeira angola antigos, como o mestre Graúna; rodas de samba improvisadas, que ganharam maior representação na volta das rodas da Pedra do Sal; a escola de samba Vizinha Faladeira (que ficou muitos anos sem atividade), uma das mais antigas da cidade; blocos carnavalescos, uma série de expressões culturais, mas que não estavam articuladas, nem tinham visibilidade ou incentivo muitas vezes até mesmo entre os moradores.

Vários elementos mudariam o curso dessa história. Entre eles, destacam-se o fortalecimento do Instituto dos Pretos Novos e do sítio arqueológico como referências concretas da história da escravidão na região, a reivindicação por reconhecimento fundiário do grupo de remanescentes de quilombo Pedra do Sal e a emergência das ruínas (bem conservadas) de parte do Cais do Valongo a partir de escavações realizadas em 2010. Toma corpo, no período de 2005 a 2010, uma série de articulações entre esses diversos agentes, que estabelecem definitivamente a referência da Pequena África em seu repertório, não como volta ao passado, mas como atualização desse passado no presente.



16. BANDEIRA, Manuel. Mangue. In: ______. Libertinagem. 2. ed. São Paulo: Global Editora, 2013.