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Maria Pace Chiavari


Do pão da terra ao pão de trigo


Armazém de farinha. M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Armazém de farinha. M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

“Sem farinha, homem não vive”, afirma Luís da Câmara Cascudo ao tratar da história da alimentação no Brasil.7 A farinha mencionada é a de mandioca, base da alimentação indígena. Com ela, era possível confeccionar o denominado “pão da terra”, em grande uso entre os brasileiros.8 Esse hábito, entretanto, não satisfazia o paladar de todos.9 Assim, o plantio de trigo no Brasil era desejado, principalmente pelos imigrantes europeus. Para eles, a reconstituição dos hábitos alimentares da terra de origem se punha como condição fundamental para manterem a própria identidade cultural no novo país.

Relatórios redigidos pelos vice-reis Marquês do Lavradio e D. Luís de Vasconcelos, na segunda metade do século XVIII, mencionam a possibilidade de produzir o trigo no sul da colônia devido ao clima mais favorável ao cultivo.10 Entretanto, pelo alto teor de umidade do clima tropical, os primeiros resultados desse plantio demoraram muito a aparecer.

A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, foi o evento histórico que mais causou mudanças nos costumes dos brasileiros. Pouco depois da chegada da família real, entre as normas estabelecidas para a cidade se adaptar aos hábitos europeus, estava a confecção do pão de farinha de trigo. Não foi fácil, para o reduzido número de padeiros estabelecidos na capital, satisfazer os gostos da corte e de seu entourage. A solução foi recorrer à farinha de trigo importada. Na qualidade de produto de luxo, o pão de trigo faz, finalmente, sua entrada oficial nas elegantes mesas dos brasileiros!

Armazém de farinha. Foto de M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGEEnsacamento de farinha. Foto de M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
I. Armazém de farinha. Foto de M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
II. Ensacamento de farinha. Foto de M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

A produção do pão de farinha de trigo serviu de espelho para o país assumir consciência do seu nível de desenvolvimento e, ao mesmo tempo, de incentivo capaz de estimular o Brasil a se modernizar e entrar no processo de industrialização. Do outro lado do Atlântico,11 nessa mesma época, aconteciam grandes inovações no setor da moagem.  [III]

Graças às novas tecnologias, as modernas máquinas permitem diminuir o tempo de produção e aumentar, em proporção, a quantidade de farinha obtida. A introdução desse novo sistema no Brasil possibilita que o preço pago pela importação do trigo seja logo compensado. Na escolha da localização mais apta para implantar tal moderno processo de industrialização, é dada prioridade ao Rio de Janeiro, devido às favoráveis condições econômicas e políticas oferecidas pela cidade. A imagem simbólica que assinala a importante passagem enfrentada pelo país é a do pão de trigo, que, em poucos anos, passa a fazer parte da mesa dos brasileiros como “o pão de todos os dias”.

[III]
A máquina a vapor

A revolução decisiva na história dos moinhos para cerais é baseada num sistema automatizado concebido pelo americano Oliver Evans na década de 1780, e aperfeiçoado no Reino Unido, onde é então utilizado o vapor como força motora. Pelo novo sistema acionado pelas máquinas a vapor, obtém-se um extraordinário aumento na produção de farinha.


Laboratório de panificação experimental do Moinho Fluminense em 1945. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE.Laboratório de controle de qualidade: análise das farinhas e farelos do Moinho Fluminense em 1958. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGELaboratório de panificação experimental do Moinho Fluminense em 1945. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
O Moinho Fluminense abastecia as padarias de muitas cidades ao redor do país. Propaganda realizada pelos padeiros da Santos & Irmãos, “Impório e Padaria São Francisco” no Paraná, na década de 1920. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Publicidade feita em 1932 pelo Depósito da cidade de Petrópolis. Foto de Nietzch. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
I. Laboratório de controle de qualidade: análise das farinhas e farelos do Moinho Fluminense em 1958. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
II. Laboratório de panificação experimental do Moinho Fluminense em 1945. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
III. O Moinho Fluminense abastecia as padarias de muitas cidades ao redor do país. Propaganda realizada pelos padeiros da Santos & Irmãos, “Impório e Padaria São Francisco” no Paraná, na década de 1920. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
IV. Publicidade feita em 1932 pelo Depósito da cidade de Petrópolis. Foto de Nietzch. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE



7. CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004. p. 90.
8. CASCUDO, Luís da Câmara. A antologia da alimentação brasileira. São Paulo: Global Editora, 2011. p. 972.
9. ALGRANTI, Leila Mezan. Alimentação e cultura material no Rio de Janeiro dos vice-reis. Varia Historia, v. 32, n. 58, p. 21-51, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/vh/v32n58/0104-8775-vh-32-58-0021.pdf>. Acesso em: mar. 2021.
10. Relatórios do Marquês do Lavradio: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 23, 1860, p. 21, p. 217, p. 229-233; Relatório de D. Luís de Vasconcelos: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 4, 1842, p. 480-482.
11. Refere-se à Inglaterra, cuja tecnologia era o resultado de experiências realizadas paralelamente nos Estados Unidos.