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Piedade Grinberg


Moinho Fluminense, patrimônio carioca, símbolo e ícone de um bairro


A fachada principal do Moinho em 1904 e o passadiço entre o edifício principal e o armazém, antes do aterro, vistos do mar. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
A fachada principal do Moinho em 1904 e o passadiço entre o edifício principal e o armazém, antes do aterro, vistos do mar. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

Descubra-se, na Gamboa e Saúde, o Moinho Fluminense, tornado símbolo e ícone de um bairro que se transformou em “cidade moderna” no início da era industrial na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, e mais recentemente “redescoberto” com as obras do Porto Maravilha.

Testemunho das transformações da cidade e palco de inúmeros eventos inusitados e circunstanciais desde sua fundação em 1887, o Moinho resgata nas diversas etapas das suas várias remodelações e acréscimos uma espécie de registro da linguagem visual desse bairro em várias épocas, envolvido no entorno pela arquitetura colonial dos casarios e das igrejas e pela arquitetura eclética do início do século XX.

Dentro de uma visão específica, detalhista e documental, o fotógrafo trata o espaço urbano como a uma paisagem, e nos revela cantos e recantos induzindo o espectador a se perguntar até que ponto o seu trabalho esquemático pode nos fazer sonhar com a cidade ideal. Qual ângulo nos é mais caro? Como o fotógrafo o torna mais visível? Que cidade é essa?

As ruas estreitas desembocam numa esquina, numa curva, e a massa arquitetônica do Moinho surge imponente, causando impacto ao passante. Impossível não perceber a sólida estrutura, as fachadas, os vários ângulos, os detalhes em ferro, as ornamentações.

Presente em vários guias sobre o Rio de Janeiro, mapas, cartões-postais, propagandas em jornais, anúncios institucionais, panoramas comerciais, o Moinho Fluminense terá a sua imponente edificação industrial como sua marca, seu registro como pertencimento para os moradores do seu entorno e para a memória do bairro e da cidade.

A decoração eclética, com seus ornamentos, muito usada a partir da segunda metade do séc. XIX no Rio de Janeiro, foi aplicada na fachada dos armazéns, assim como a composição em letras com o nome do Moinho Fluminense nas três pontes que os separam, necessária para individualizar e identificar as edificações e seus proprietários. Culminando com os outros elementos decorativos sofisticados, chamam atenção os imponentes grifos – corpo de leão e asas de águia. Entre as simbologias atribuídas ao grifo, estão a sabedoria, a força e o poder, bem como a vitória das virtudes sobre o vício. Para os gregos e na Idade Média, acreditava-se que a função do grifo era de proteção, de fidelidade e de lealdade.

Esses elementos, repetidos em ambos os lados das pontes, representam e reafirmam a seriedade, a competência e a responsabilidade de seus proprietários e da empresa.

Interessante observar que, na planta da fachada da reforma de 1912, o complemento que finaliza a decoração das pontes são cornucópias com pequenas flores, num acabamento suave e inexpressivo.

Os mais importantes fotógrafos do fim do século XIX e das primeiras décadas do século XX que atuaram no Rio de Janeiro captaram as transformações arquitetônicas dos vários bairros da cidade, tornando essas imagens um imprescindível legado para a história da cidade.

George Leuzinger (1813-1892), fotógrafo suíço, radicado no Rio de Janeiro, foi responsável por belas vistas da paisagem carioca a partir da década de 1860, quando registra como panorama a enseada da Saúde e Gamboa e as demolições dos mercados no entorno do Moinho Fluminense. Marc Ferrez (1843-1923), um dos mais renomados fotógrafos do Brasil, exerceu seu trabalho com preocupação estética, presente em suas composições. Várias das suas imagens representando o Moinho Fluminense em diversos momentos foram publicadas em revistas e jornais da época. Juan Gutierrez (1859-1897) foi um dos mais importantes fotógrafos paisagistas do século XIX e um dos maiores cronistas visuais do Rio de Janeiro, tendo registrado a transição da cidade imperial para a cidade republicana. Luís Musso (18??-1908) realizou trabalhos de documentação para a firma Antonio Jannuzzi, Irmão & Cia. Augusto Malta (1864-1957), como fotógrafo amador, realizou extensa iconografia sobre eventos, usos e costumes do Rio de Janeiro. Nomeado como primeiro fotógrafo oficial da Prefeitura do Distrito Federal, na gestão de Pereira Passos, acompanhou todas as modernas transformações da cidade, incluindo as obras do novo porto, e foi importante referência para a historiografia da cidade. Jorge Kfuri (1893-1965), fotógrafo aviador e autor das primeiras fotografias aéreas do Rio de Janeiro, nos legou imagens inusitadas e surpreendentes do Moinho Fluminense à vol d’oiseau.

Importante ressaltar que os acervos dos fotógrafos citados se encontram em instituições públicas e particulares com acesso aos interessados, visando sobretudo divulgar a história da cidade do Rio de Janeiro.

Inúmeras imagens foram feitas por fotógrafos desconhecidos e/ou amadores, estampadas em propagandas, impressas em jornais, revistas, folhetos, cartões-postais, registros institucionais e, sobretudo, das transformações e mudanças arquitetônicas no conjunto de edificações do Moinho Fluminense. Todos esses registros são de suma importância para o entendimento claro e objetivo dessas modificações e do seu entorno, auxiliando nas novas e modernas propostas para o melhor aproveitamento de todo esse complexo de estruturas.

Alguns desses fotógrafos se destacam pela qualidade do trabalho e do registro específico, numa leitura, na maioria das vezes, romântica da paisagem bucólica e nativa, frequentemente acrescida de elementos idealizados, desproporcionais à escala humana, quando também não respeitavam a verossimilhança, confundindo elementos de climas e regiões diferentes. Em outros, é possível distinguir um olhar mais detalhista e científico quando a imagem se esquematiza e revela aspectos minuciosos.

Essas representações temáticas, formando um conjunto de preferências estéticas, adquirem a sua definição dentro do mundo cultivado, gerando uma espécie de disciplina rigorosa e uma quase insaciável obsessão pela obediência a certas regras, técnicas e formulários artísticos que encaminhariam o fotógrafo para a meta consagrada. É o “olho” que o conduz através das lentes, mas é seu senso crítico e seu instinto que o orientam para o resultado final.

O problema para o fotógrafo naquele momento era como chegar a essa nova visão da “natureza/entorno” – conceito progressista e inquisidor, como um novo modelo para o entendimento da cidade –, consequência de uma mudança real na qual a paisagem e o estudo concomitante da natureza se tornariam a chave para o entendimento contemporâneo do mundo.

A nostalgia de um passado perdido, mas não vivido, e a realidade contundente de uma cidade híbrida, múltipla, muitas vezes impessoal e agressiva, mas que permanece deslumbrante, tornam esse sonho pouco convincente, porque a cidade possui na verdade uma paisagem notável, impregnada de emoção poética, comovente, harmoniosa, espontânea, fruto de um impecável senso de composição e equilíbrio plástico do fotógrafo.

Vista aérea do cais do porto nas primeiras décadas do século XX. Jorge Kfuri, 1916-1923. ACERVO ARQUIVO DA MARINHA | DPHDM – MARINHA DO BRASILReforma na fachada do Moinho, realizada em 1987. Foto de Helmut. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGECais do porto em 1927. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE.
I. Vista aérea do cais do porto nas primeiras décadas do século XX. Jorge Kfuri, 1916-1923. ACERVO ARQUIVO DA MARINHA | DPHDM – MARINHA DO BRASIL
II. Reforma na fachada do Moinho, realizada em 1987. Foto de Helmut. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

III. Cais do porto em 1927. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE.