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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


Entre quatro morros

 
Ao adentrar a baía, avistavam-se os quatro pequenos morros cuja altura variava de 30 a 60 metros, com suas construções religiosas no topo: o do Castelo (1583, jesuítas), de Santo Antônio (1620, franciscanos), São Bento (1670, beneditinos) e o da Conceição (1590), encantadora colina que contava ainda com a fortaleza construída para a defesa da cidade contra a ameaça permanente dos corsários franceses. A fé dominava o cenário urbano desde o alto das elevações até as terras baixas.

As inúmeras torres de igrejas não eram apenas demonstração do poder eclesiástico. Sinos e carrilhões tinham importante função no cotidiano da cidade, ainda muito silenciosa naqueles tempos. O badalar dos sinos, propagando-se até os mais distantes recantos, continha diferentes avisos à população. No caso de incêndio, o número de badalos espaçados indicava até a freguesia onde o fogo iniciava. Além de aviso em questões de emergência, eles soavam rotineiramente às dez horas da noite: era o toque de recolher determinado pelo intendente-geral da Polícia, que assim pretendia defender “os bons costumes”. Uma ronda percorria as ruas e aplicava alta multa a quem desobedecesse à ordem. Para os escravos, a punição era bem mais dura: chibatadas e uma noite de prisão na cadeia.

Além das igrejas encarapitadas nos outeiros, na várzea se instalaram os conventos de N. S. da Ajuda (1750), de N. S. do Carmo (1590) e, mais tarde, inúmeras igrejas de outras devoções, sendo a mais conhecida delas a Igreja de N. S. da Candelária (1775-1898). De aparência severa em suas fachadas, era por dentro que se exibia a riqueza da colônia, propiciada pela descoberta e exploração do ouro nas Minas Gerais, cuja opulência se refletia nas talhas forradas de folhas de ouro em seus altares.

Duas pequenas igrejas se destacavam externamente a esse conjunto compacto de instalações religiosas próximas ao Terreiro do Paço (Praça XV): a de N. S. da Glória (1742) e a de N. S. da Saúde (1743). A primeira, no outeiro que avançava sobre as águas cristalinas do lado sul da baía, local onde se travara a batalha de Uruçumirim em 20 de janeiro de 1567, impondo a derradeira derrota aos huguenotes e seus aliados Tamoios. A segunda, mais modesta, dedicada à N. S. da Saúde (1743), no alto do morro de mesmo nome, que dominava suavemente o litoral recortado e caprichoso no interior da Baía de Guanabara.

Nesta pequena nesga que ia dar na Prainha, se desenvolveriam durante os séculos vindouros as mais importantes atividades portuárias da cidade e do Brasil. Mantida por muito tempo afastada do centro urbano, esta região se comunicava com a cidade pelo caminho da Vala (atual Rua Uruguaiana), que tinha início na Lagoa de Santo Antônio (onde hoje está o Largo da Carioca) e ia desaguar na Prainha (Praça Mauá), aos pés do morros de São Bento e da Conceição.

Originalmente um lugar encantador, este trecho da orla da Baía de Guanabara foi sendo alterado, progressivamente, chegando ao final do século XIX impregnado por uma atmosfera pesada. Ali, nas imediações do Largo da Prainha, havia sido instalada uma forca onde eram sacrificados criminosos e escravos rebeldes da cidade. Desmontada em 1834 devido a protestos do vizinho Mosteiro de São Bento, era remontada no mesmo local sempre que necessário.

Não era apenas esta a fonte de mau agouro a impregnar pouco a pouco a imagem da área. Logo na esquina da Ladeira da Conceição com a Rua da Vala, ficava o Aljube, um cárcere eclesiástico construído em 1735, onde eram aprisionados padres que não obedeciam as regras da igreja, como não embriagar-se, não fazer arruaças ou não envolver-se com contrabandistas.

Ficavam ali também os chamados “cristãos-novos”, que aguardavam sua deportação para Portugal, onde seriam julgados pelo Santo Ofício da Inquisição. Só no início do século XIX é que o Aljube foi transformado em prisão comum, recebendo o nome de Cadeia da Relação. Tempos depois, quando não mais havia nem a forca nem o Aljube (demolido em 1906), o local permanecia assombrado. Cronistas da época contavam que, à noite, podiam ser ainda ouvidos murmúrios e choros das vítimas que ali haviam falecido.