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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


A travessia da cordilheira portuária


Botica. Jean-Baptiste Debret, 1823. ACERVOS DOS MUSEUS CASTRO MAYA/IBRAM
Botica. Jean-Baptiste Debret, 1823. ACERVOS DOS MUSEUS CASTRO MAYA/IBRAM

Fato relevante para a cidade foi o surgimento de uma nova elite ainda no século XVIII: os homens de negócio. Esse novo grupo social conseguiu romper o monopólio do poder até então concentrado nos poderosos senhores do setor agroexportador e, a partir do crescimento de sua representatividade, novos temas e interesses entraram na pauta de debates, pois interferiam não apenas na esfera econômica, mas também na antiga política já estabelecida na cidade.

Estes interesses divergentes se converteram logo em disputas por poder político entre a nobreza da terra e os negociantes. Nesse sentido, ao longo de todo século XVIII, um dos principais palcos de querelas entre os dois grupos seria a Câmara Municipal, principal instância política criada pela Coroa portuguesa com o objetivo de transplantar para as colônias ultramarinas os modos de produção do reino, e ao mesmo tempo garantir maior uniformidade na gerência dos interesses régios. 

Um dos princípios do sistema colonial português rigidamente obedecido pelas Câmaras era o desestímulo à instalação de indústrias nas colônias, que deveriam se dedicar exclusivamente a atividades agrícolas ou extrativistas para exportação. Por isso, em 1784, existiam apenas 268 pequenas fábricas artesanais em toda a capitania do Rio de Janeiro, a maioria delas dedicadas ao processamento da espécie Indigofera – planta comum na região –, da qual se obtinha o anil, pigmento que deveria obrigatoriamente ser vendido para a Coroa, que se encarregava de sua exportação para as indústrias têxteis inglesas. Apesar da resistência da elite tradicional, negociantes e proprietários das pequenas fábricas enriqueciam e procuravam investir não só na aquisição de terras, mas também em atividades mais lucrativas. Estes foram os primeiros sinais de que mudanças estavam por vir.

O século XIX foi um período de grandes transformações da cidade, que se refletiram na ocupação das terras até então à parte da expansão da urbe. Os caminhos logo no alvorecer do novo século tomaram o rumo noroeste na direção da Fazenda Real de Santa Cruz, percorrendo locais que depois seriam conhecidos como Rio Comprido, São Cristóvão, Tijuca, Andaraí. Na direção sul, buscando chegar ao Engenho d’El Rei, foram semeadas novas ocupações, mais tarde transformadas em bairros, como os da Glória, do Catete, de Laranjeiras, do Flamengo, de Botafogo e da Gávea.

No Centro, surgiram os caminhos de Santa Teresa e da Conceição. O caminho pela orla, na continuação ao da Praia de Manuel de Brito, era precário, acidentado, muito colado às encostas e às águas da Baía de Guanabara e literalmente interrompido pelo Saco do Alferes (hoje Avenida Francisco Bicalho), que separava os atuais bairros de São Cristóvão e do Santo Cristo. A geografia era encantadora, mas árdua de ser percorrida e, sendo assim, difícil de abrigar uma expansão confortável da malha urbana. Água e morros constituíam a paisagem. Nos promontórios da Saúde e da Gamboa, debruçavam-se as igrejinhas de São Francisco da Prainha (1738/48) e de N. S. da Saúde (1743).

No Morro da Conceição, sobressaía a grande muralha da já obsoleta fortaleza, em desuso desde que os franceses, numa última investida de cerca de 3.500 homens capitaneados por Duguay-Trouin, haviam sitiado a cidade em 1710, cobrado um alto resgate – 600 mil cruzados em ouro, 200 bois e 100 caixas de açúcar, sem contar os saques – e partido para sempre.17 Os franceses só voltariam à cidade cerca de cem anos depois, numa comportada e culta missão de arquitetura e arte para abrilhantar a corte imperial e a aristocracia nascente no país. Lebreton, Debret, Taunay e Grandjean de Montigny foram alguns dos nomes de professores e artistas franceses encarregados de ampliar os conhecimentos acadêmicos dos cariocas.

Na metade do século XVIII, o Rio de Janeiro já possuía cerca de 50 mil habitantes, sendo então a maior cidade brasileira (a segunda era São Salvador, na Bahia) e a 29ª no ranking internacional entre as principais cidades europeias, a maior sendo Londres, com 1.117.000 habitantes.18

A pulsão da cidade com seu porto ampliado em direção à Gamboa, transportando em grandes navios ouro e cana-de-açúcar para a metrópole e em embarcações menores conectando o fundo da baía com o litoral do Valongo, certamente a credenciou para abrigar a corte portuguesa em sua fuga da invasão napoleônica das terras lusitanas, fato ocorrido em 1808.

Foi no alvorecer do século XIX que um verdadeiro turbilhão atingiu a cidade e mudou para sempre os rumos da ainda tímida capital da colônia e do próprio país. Em 8 de março de 1808, após uma viagem ultramarina de 108 dias, com uma pequena estadia em São Salvador na Bahia, no cais de granito lavrado encimado por um chafariz em forma de pirâmide, projetado em meados do século XVIII por Mestre Valentim, aportaram no Rio dezesseis caravelas escoltadas pela esquadra inglesa, trazendo a corte portuguesa.

Nesses veleiros, sendo o mais imponente o Príncipe Real, veio uma população que compreendia, além da rainha de Portugal, D. Maria I, e o príncipe herdeiro, D. João VI, toda a família real, os nobres da corte, serviçais e simples tripulantes. Um total que os historiadores ainda não sabem precisar, mas entre 10 mil a 15 mil pessoas, em 56 navios de esquadras portuguesas e inglesas (28 embarcações) e, ainda, em barcos da marinha mercante, deixaram para trás, em 29 de novembro de 1807, a sede do reino português na Europa, prestes a ser invadida pelas tropas napoleônicas.19


17. DORIA, Pedro. O Rio refém de um pirata. Extra, 16 set. 2011. Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/saude-e-ciencia/o-rio-refem-de-um-pirata-2635255.html>.
18. CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 258.
19. LIGHT, Kenneth. A viagem marítima da Família Real. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2008. p. 113.