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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


Um tesouro a ser preservado


Igreja e Adro do São Francisco da Prainha. Foto de Mauricio Hora, 2021.
Igreja e Adro do São Francisco da Prainha. Foto de Mauricio Hora, 2021.

Segundo Pinheiro e Rabha,45 a partir de meados da década de 1980, a região viveria um novo ciclo, em que predominariam imagens paralelas de riqueza histórica e cultural e de decadência material. Envolta num certo romantismo e impulsionada por ideias ora progressistas ora culturalistas,46 a região portuária voltaria a ocupar, como no início do século XX, o imaginário da cidade e a alimentar especulações sobre seu futuro: “Ainda não entendi por que é que não disputamos o privilégio de morar nessas ruas de sobrados, não os restauramos lindamente, (...) aproveitando a dignidade, a serenidade que ficaram daqueles tempos, nos altos pés-direitos, nas salas amplas, nos beirais de telhas azuis, nas fachadas de azulejos.”47

As ideias e discussões foram sustentadas principalmente por instituições privadas, como a Associação Comercial do Rio de Janeiro, e públicas, como a Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação Geral, a Secretaria Municipal de Cultura e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), além de iniciativas oriundas do mundo acadêmico promovidas pelas universidades e órgãos ligados ao planejamento urbano e aos estudos de arquitetura. Embora de forma ainda tímida, surgiam também iniciativas das comunidades locais, como as dos moradores dos morros da Conceição e da Providência.

A “descoberta” dos encantos do Morro da Conceição, resiliente enclave residencial em pleno Centro da cidade, ajudou a fixar uma imagem positiva para a área povoada de pequenos sobrados, ruas de nomes pitorescos e atraentes, como Rua do Jogo da Bola, Ladeira João Homem, Ladeira do Escorrega, Travessa do Sereno, Largo São Francisco da Prainha e Pedra do Sal.

A encantadora atmosfera deste pequeno bairro da Saúde atraiu a mídia e seduziu os cariocas, que, a partir de então, passaram a frequentar o local. Este encanto, entretanto, não produziu efeitos duradouros e, em pouco tempo, a área voltou ao ostracismo.

Nesse contexto, sobressai a criação do Projeto SAGAS (Saúde, Gamboa, Santo Cristo), de preservação de 1.838 imóveis dos antigos bairros portuários. Some-se a esta medida a preservação pelo IPHAN, em nível nacional, de inúmeros monumentos tombados no Morro da Conceição e em sua vizinhança.48

Vista da Gamboa, com destaque para a Fortaleza da Conceição em 2021. Foto Mauricio Hora.
Vista da Gamboa, com destaque para a Fortaleza da Conceição em 2021. Foto Mauricio Hora.

Destaque especial foi dado ao tombamento do prédio do Moinho Fluminense,49 baseando-se no relatório técnico do IPHAN que sublinhava o valor arquitetônico de sua fachada, dos passadiços de ferro fundido e dos belos baixos-relevos compostos por dragões alados e volutas.

Estas medidas podem ser consideradas o marco institucional do início das transformações que colocariam a área portuária no foco das atenções da emergente política pública de preservação de áreas históricas no Rio de Janeiro e no Brasil, epicentro das transformações estruturais da antiga área do porto da cidade, que no início do século XXI seria objeto de novas e profundas intervenções.

No dia 25 de agosto de 1987, o Moinho Fluminense comemora 100 anos de existência. Para celebrar a data, a empresa realiza a restauração das fachadas do Moinho e das pontes de ligações entre as construções, tombadas um ano antes pelo Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (...) decide adotar a Praça Coronel Assunção, popularmente conhecida como Praça da Harmonia, de importância histórica para o bairro da Saúde, onde funcionava já no século XVII como área comercial, embrião da Zona Portuária do Rio de Janeiro, quando as águas da Baía ainda avançavam até a encosta. Tendo seu desenho original sido descaracterizado com o tempo com o surgimento das atividades fabris e a ampliação do porto, a praça receberia, com a adoção pelo Moinho Fluminense, um investimento de US$ 120 mil dólares para intervenções de restauro (...). O projeto indica o compromisso com a reconstrução do coreto, reforma dos jardins, colocação de bancos e iluminação, além de, uma vez concluídas as obras, conservação, manutenção e limpeza da praça. A Praça constitui um dos mais expressivos conjuntos urbanos da cidade do Rio de Janeiro. Reinaugurada no dia 1º de junho de 1988, seria a primeira vez na história da cidade do Rio de Janeiro que uma área pública foi recuperada e conservada por meio de empresa privada, de acordo com jornais da época que noticiaram o fato.50

Em fevereiro de 2001, o Instituto Pereira Passos, órgão da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, ligado à Secretaria Municipal de Urbanismo, deu início a estudos com a finalidade de estabelecer um Plano de Reestruturação e Revitalização da Região Portuária – Porto do Rio.51

As propostas contidas no plano visavam, entre outros objetivos, romper a inércia existente para o desenvolvimento da área, adaptar os usos e a ocupação do solo a um novo perfil de atividades, considerando que praticamente toda a atividade portuária havia se deslocado para novos portos no próprio Rio de Janeiro e no Brasil. Entre outras diretrizes, o plano considerava especialmente importante articular os bairros portuários entre si e a cidade, valorizar o patrimônio cultural, adensar a área com novas atividades residenciais e comerciais, estimular a reciclagem das edificações antigas, notadamente dos armazéns, introduzir melhorias na infraestrutura e requalificar os espaços públicos.

Este plano não foi levado a cabo, mas deu origem ao plano que viria a seguir, batizado de “Porto Maravilha”.

Igreja da Saúde. Foto Mauricio Hora, 2021.
Há uma estação do VLT em frente ao prédio do Moinho Fluminense, na Rua Pedro Ernesto. Foto de Mauricio Hora, 2021.
I. Igreja da Saúde. Foto Mauricio Hora, 2021.
II. Há uma estação do VLT em frente ao prédio do Moinho Fluminense, na Rua Pedro Ernesto. Foto de Mauricio Hora, 2021.



45. PINHEIRO, Augusto Ivan de Freitas; RABHA, Nina Maria de Carvalho Elias. Um projeto para a região portuária do Rio. Cadernos de Urbanismo, ano 3, n. 4, Secretaria Municipal de Urbanismo, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2001. p. 34-35.
46. Ver JACOBS, Jane. The Death and Life of Great American Cities. Nova Iorque: Modern Library Edition, 1961.
47. LESSA, Elsie. In: Rio de Janeiro em Prosa e Verso. vol. V. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1965. p. 64.
48. Portaria nº 002 de 14 de março de 1986.
49. Decreto nº 6.057 de 23 de agosto de 1986.
50. Histórico do Moinho Fluminense. Centro de Memória Bunge, São Paulo.
51. PINHEIRO, Augusto Ivan de Freitas; RABHA, Nina Maria de Carvalho Elias. Um projeto para a região portuária do Rio. Cadernos de Urbanismo, ano 3, n. 4, Secretaria Municipal de Urbanismo, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2001. p. 34-37.