Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli
Um tesouro a ser preservado
Segundo Pinheiro e Rabha,45 a partir de meados da década de 1980, a região viveria um novo ciclo, em que predominariam imagens paralelas de riqueza histórica e cultural e de decadência material. Envolta num certo romantismo e impulsionada por ideias ora progressistas ora culturalistas,46 a região portuária voltaria a ocupar, como no início do século XX, o imaginário da cidade e a alimentar especulações sobre seu futuro: “Ainda não entendi por que é que não disputamos o privilégio de morar nessas ruas de sobrados, não os restauramos lindamente, (...) aproveitando a dignidade, a serenidade que ficaram daqueles tempos, nos altos pés-direitos, nas salas amplas, nos beirais de telhas azuis, nas fachadas de azulejos.”47
As ideias e discussões foram sustentadas principalmente por instituições privadas, como a Associação Comercial do Rio de Janeiro, e públicas, como a Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação Geral, a Secretaria Municipal de Cultura e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), além de iniciativas oriundas do mundo acadêmico promovidas pelas universidades e órgãos ligados ao planejamento urbano e aos estudos de arquitetura. Embora de forma ainda tímida, surgiam também iniciativas das comunidades locais, como as dos moradores dos morros da Conceição e da Providência.
A “descoberta” dos encantos do Morro da Conceição, resiliente enclave residencial em pleno Centro da cidade, ajudou a fixar uma imagem positiva para a área povoada de pequenos sobrados, ruas de nomes pitorescos e atraentes, como Rua do Jogo da Bola, Ladeira João Homem, Ladeira do Escorrega, Travessa do Sereno, Largo São Francisco da Prainha e Pedra do Sal.
A encantadora atmosfera deste pequeno bairro da Saúde atraiu a mídia e seduziu os cariocas, que, a partir de então, passaram a frequentar o local. Este encanto, entretanto, não produziu efeitos duradouros e, em pouco tempo, a área voltou ao ostracismo.
Nesse contexto, sobressai a criação do Projeto SAGAS (Saúde, Gamboa, Santo Cristo), de preservação de 1.838 imóveis dos antigos bairros portuários. Some-se a esta medida a preservação pelo IPHAN, em nível nacional, de inúmeros monumentos tombados no Morro da Conceição e em sua vizinhança.48
Destaque especial foi dado ao tombamento do prédio do Moinho Fluminense,49 baseando-se no relatório técnico do IPHAN que sublinhava o valor arquitetônico de sua fachada, dos passadiços de ferro fundido e dos belos baixos-relevos compostos por dragões alados e volutas.
Estas medidas podem ser consideradas o marco institucional do início das transformações que colocariam a área portuária no foco das atenções da emergente política pública de preservação de áreas históricas no Rio de Janeiro e no Brasil, epicentro das transformações estruturais da antiga área do porto da cidade, que no início do século XXI seria objeto de novas e profundas intervenções.
No dia 25 de agosto de 1987, o Moinho Fluminense comemora 100 anos de existência. Para celebrar a data, a empresa realiza a restauração das fachadas do Moinho e das pontes de ligações entre as construções, tombadas um ano antes pelo Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (...) decide adotar a Praça Coronel Assunção, popularmente conhecida como Praça da Harmonia, de importância histórica para o bairro da Saúde, onde funcionava já no século XVII como área comercial, embrião da Zona Portuária do Rio de Janeiro, quando as águas da Baía ainda avançavam até a encosta. Tendo seu desenho original sido descaracterizado com o tempo com o surgimento das atividades fabris e a ampliação do porto, a praça receberia, com a adoção pelo Moinho Fluminense, um investimento de US$ 120 mil dólares para intervenções de restauro (...). O projeto indica o compromisso com a reconstrução do coreto, reforma dos jardins, colocação de bancos e iluminação, além de, uma vez concluídas as obras, conservação, manutenção e limpeza da praça. A Praça constitui um dos mais expressivos conjuntos urbanos da cidade do Rio de Janeiro. Reinaugurada no dia 1º de junho de 1988, seria a primeira vez na história da cidade do Rio de Janeiro que uma área pública foi recuperada e conservada por meio de empresa privada, de acordo com jornais da época que noticiaram o fato.50
Em fevereiro de 2001, o Instituto Pereira Passos, órgão da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, ligado à Secretaria Municipal de Urbanismo, deu início a estudos com a finalidade de estabelecer um Plano de Reestruturação e Revitalização da Região Portuária – Porto do Rio.51
As propostas contidas no plano visavam, entre outros objetivos, romper a inércia existente para o desenvolvimento da área, adaptar os usos e a ocupação do solo a um novo perfil de atividades, considerando que praticamente toda a atividade portuária havia se deslocado para novos portos no próprio Rio de Janeiro e no Brasil. Entre outras diretrizes, o plano considerava especialmente importante articular os bairros portuários entre si e a cidade, valorizar o patrimônio cultural, adensar a área com novas atividades residenciais e comerciais, estimular a reciclagem das edificações antigas, notadamente dos armazéns, introduzir melhorias na infraestrutura e requalificar os espaços públicos.
Este plano não foi levado a cabo, mas deu origem ao plano que viria a seguir, batizado de “Porto Maravilha”.