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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


Aportam novos habitantes


Pouco a pouco se iam os trapiches e instalavam-se galpões e armazéns sobre aterros improvisados. Encerrava-se gradativa e lentamente o regime de escravidão no Brasil, e a mão de obra de escravos libertos era lançada no mercado de trabalho livre, engrossando o contingente de subempregados e desempregados.

Os que trabalhavam no campo foram para a cidade, somando-se a milhares de imigrantes estrangeiros das mais diferentes culturas, principalmente portugueses, italianos, espanhóis, árabes, judeus e asiáticos. Na sua maioria, povos tocados pelas dificuldades vividas em seus países, principalmente onde a agricultura havia sido devastada pelo clima e pelas guerras, e que viam como saída aventurar-se a uma travessia transatlântica para aportar no Rio de Janeiro. Atraídos pela notícia de que as atividades cafeeiras no Brasil se encontravam em plena expansão, buscavam aqui uma vida melhor.

Vê-se que a década que precedeu a República apresenta o maior crescimento populacional relativo. Em termos absolutos, tem-se que a população quase dobrou entre 1872 e 1890, passando de 266.000 a 522.000 (...). Só no ano de 1891, entraram 166.321 imigrantes, tendo saído para outros estados 71.264 (...). Não foram apenas alterações quantitativas a impactar o equilíbrio da cidade. Alterou-se também a composição étnica e da estrutura ocupacional.25

Essa mão de obra desqualificada, quando não absorvida pelas atividades agrícolas brasileiras, daria origem a um crescente proletariado urbano perambulando diariamente nas ruas em busca de ganho e de moradia. Pouco antes da República, o embaixador português anotava: “Está a cidade do Rio de Janeiro cheia de gatunos e malfeitores de todas as espécies.”

O Centro continuava sua expansão para o norte e o sul da cidade. O levantamento mais próximo segundo Eusébio de Queiroz e Haddock Lobo é o que foi levado a efeito em 1849: 226.466 habitantes viviam no Rio. Aumentara na cidade a população flutuante, com elevado número de viajantes estrangeiros que passavam pelo Rio de Janeiro. Além disso, as famílias senhoriais abastadas iam com frequência à Europa em busca de cultura e refinamento. Sem contar com a intensa atividade econômica que se desenvolvia na região onde se concentrava o trabalho árduo e desqualificado, geralmente da estiva. “No período de 1847-1848 ali aportaram 992 navios de longo curso com a carga de 103.000 toneladas; e zarparam 972 com 108.663 toneladas.”26

As famílias mais abastadas se deslocavam para as regiões norte e sul da cidade, dando origem a novos bairros. Os mais pobres, sem condições de encontrar lugar melhor, se instalavam nos antigos sobrados coloniais da área central ou nas franjas dos morros portuários. A pobreza se avolumava, as condições sanitárias pioravam e as doenças proliferavam. Perdendo em pouco tempo suas características residenciais, a zona central da cidade foi se tornando um espaço comercial, de serviços, pequenas manufaturas e atividades de governo.

Importante lembrar que, até o final do século XIX, prevaleciam inúmeras restrições à implantação de indústrias no Brasil, principalmente devido a acordos comerciais firmados com a Inglaterra, pioneira da produção fabril no mundo. Eram permitidas apenas pequenas indústrias para consumo interno, tais como calçados e fiação, sendo esta direcionada exclusivamente à produção de panos grossos de uso dos escravos e trabalhadores. Impostas tais condições, entende-se por que, em 1850, o número de fábricas no país era tão reduzido, não ultrapassando cinquenta estabelecimentos industriais, aí incluídas várias salineiras.

No entanto, durante a segunda metade do século XIX, algumas circunstâncias propiciaram o surgimento de um movimento que buscava como primeiro esforço o fim do predomínio absoluto da atividade agrícola na economia do país. Associada à entrada de um número considerável de imigrantes no país, sucessivas leis culminaram com a abolição da escravatura em 1888, liberando recursos antes aplicados na compra de escravos para investimento no setor industrial, uma interessante oportunidade, pois o café começava a não ter mais o rendimento de outrora.

Na década de 1880, ocorreu um primeiro surto industrial, que gerou um grande implemento no processo de substituição de importações, fazendo com que, em 1889, o país atingisse o marco de seiscentos estabelecimentos industriais, a maioria deles no Rio de Janeiro.

Além do fato de ser a capital do Brasil, o Rio de Janeiro reunia, no final do século XIX, mais do que qualquer outro centro econômico, condições fundamentais para a vitalidade da atividade industrial, como oferta de mão de obra, um promissor mercado de consumo e uma rede de ferrovias já instalada. Foi nesse momento que começaram a surgir na cidade as primeiras gráficas, as metalúrgicas e as fundições, além de fábricas de calçados, de bebidas, de alimentos, de mobiliário e confecções. Todas tinham em comum o fato de serem pequenos estabelecimentos, com baixo nível de mecanização e intensa utilização de mão de obra.

Com exceção das fábricas têxteis,27 todas as mencionadas se estabeleceram inicialmente nos casarões abandonados do Centro, deslocando-se, no final do século, para São Cristóvão, bairro não só cortado por eixos ferroviários, mas também próximo aos portos da Gamboa e da Ponta do Caju. A importação de equipamentos modernos, em especial da Grã-Bretanha, permitiu ao capital industrial brasileiro “saltar etapas” e passar diretamente à grande indústria.

Foi nessa época, precisamente em 1880, que Carlos Gianelli, após período de estudos na Inglaterra, chegou ao Rio de Janeiro para instalar um moinho. Tinha então apenas 25 anos, mas adquirira experiência trabalhando na indústria do pai em Montevidéu. Auxiliado pelo irmão, Leopoldo, abriu o primeiro moinho de beneficiamento de trigo em um prédio da antiga Rua Larga de São Joaquim, atual Rua Marechal Floriano, situada no Centro da cidade. Com coragem e tenacidade, os irmãos Gianelli, apesar dos enormes desafios da época, persistiram na realização do projeto. Após obter o alvará assinado pela princesa Isabel, deslocaram em 1887 sua indústria para a Rua da Saúde, atual Rua Sacadura Cabral, nº 170 e 172, no bairro da Gamboa, zona portuária do Rio de Janeiro. Era a primeira fábrica de moagem de trigo do Brasil e a primeira de grande porte instalada na área central da cidade.

Esses pioneiros empreendedores tiveram que enfrentar enormes dificuldades para sobreviver no período. Não havia produção regular de energia, nem mão de obra qualificada. A concorrência com produtos estrangeiros e as epidemias de varíola e febre amarela se sucediam, infectando predominantemente os quarteirões mais insalubres do Centro, onde moravam os operários. Mas foram eles que, mesmo sem contar com o apoio do governo, ainda dominado pela oligarquia rural, conseguiram desencadear na cidade um processo de industrialização, ainda que rudimentar, e gerar novos postos de trabalho.


25. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 16.
26. RENAULT, Delso. O Rio antigo nos anúncios de jornais. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969. p. 210.
27. Instaladas em Bangu, Piedade, Laranjeiras e Jardim Botânico.