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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


Valongo, o mercado de escravizados


Mercado de escravos na Rua do Valongo. Jean-Baptiste Debret. ACERVOS DOS MUSEUS CASTRO MAYA/IBRAM.
Mercado de escravos na Rua do Valongo. Jean-Baptiste Debret. ACERVOS DOS MUSEUS CASTRO MAYA/IBRAM.

O Cais do Valongo foi a porta de entrada de 4 milhões de africanos escravizados que chegaram ao Brasil entre 177911 e 1831, data de seu fechamento, com a primeira tentativa de proibição do tráfico escravagista atlântico. Somente de 1811 a 1831, data que o comércio passou a ser feito às escondidas, meio milhão de escravos chegaram ao Brasil pelo Cais do Valongo.

No final do século XVIII, surgiria o Caminho do Valongo (1760), aberto entre os morros da Conceição e do Livramento, que ia dar mais além na Enseada da Gamboa. Ironia cruel se chamarem Saúde e Livramento o bairro e o morro que se constituíram por tanto tempo na paisagem cuja existência ainda hoje marca a história social, econômica e cultural do Brasil.

O Valongo se tornaria mais conhecido e frequentado no século XVIII, quando o então vice-rei, Marquês do Lavradio, impressionado “com o terrível costume de tão logo os pretos desembarcarem no porto vindos das costas africanas, entrarem na cidade através das principais vias públicas, não apenas carregados de inúmeras doenças mas também nus”,12 fez transferir, em 1774, da Praia do Peixe (hoje Praça XV), para aquele local da baía o cais (concluído em 1779) e o porto de desembarque de escravizados trazidos da África.

Pouco antes, em 1722, já se havia decidido transferir o cemitério de escravos – até então sepultados na base do Morro do Castelo – para terreno situado atrás do hospital da Irmandade da Misericórdia. Também por iniciativa do Marquês do Lavradio, foi então criado o Cemitério dos Pretos Novos no Largo de Santa Rita. Perto dali, no Largo do Depósito (hoje dos Estivadores), ficavam os armazéns para onde iam os escravos antes de serem vendidos.

Posteriormente foram o cemitério e os armazéns de escravizados transferidos para a atual Rua Pedro Ernesto e suas imediações, no bairro da Gamboa. Este local, estrategicamente escolhido, se situava bem próximo ao porto aonde chegavam os chamados navios negreiros, o que facilitava o sepultamento dos escravos recém-chegados, todos eles depauperados pelas condições da viagem, por moléstias de que já fossem portadores ou adquiridas por contágio. O cemitério permaneceu como era até setembro de 1850, quando foi decretada a Lei Eusébio de Queiroz, proibindo o tráfico de escravizados no país.

Na área do antigo cemitério – atualmente ocupada por construções –, foram encontradas inúmeras ossadas e outros vestígios de sepultamentos durante obras recentemente. No entanto, já descaracterizado, o cemitério não foi transformado em sítio arqueológico, como foi o Cais do Valongo, classificado pela UNESCO em 9 de julho de 2017 como Patrimônio Histórico da Humanidade.

No local do Cais do Valongo, por encomenda da Câmara da Cidade, foi construído o então denominado Cais da Imperatriz, em homenagem à chegada da princesa Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, que, em 1843, veio da Europa para se casar com o imperador D. Pedro II. Projetada por Grandjean de Montigny, arquiteto chegado ao Rio com a Missão Francesa (1816), a obra constava da instalação de um novo atracadouro construído sobre o antigo cais, que desapareceu com o passar do tempo, sob aterros e pedras. O projeto de Montigny não se restringia apenas à reforma do cais, estigmatizado pelo tráfico de africanos escravizados. Era imprescindível dar-lhe uma nova feição. O arquiteto utilizou-se de “pedras graníticas bem aparelhadas de tamanhos variados, formando a amurada, e o restante do calçamento sendo feito de paralelepípedos”. Havia por cima da muralha uma balaustrada adornada por quatro esculturas, representando divindades greco-romanas: Minerva, Mercúrio, Ceres e Marte. As estátuas, em mármore de Carrara, foram transferidas no início do século XX para os Jardins do Valongo e, mais recentemente, no ano 2000, para o Palácio da Cidade, em Botafogo. Cópias em gesso encontram-se hoje no local das originais. Ladeando o píer, duas esculturas de golfinhos, símbolos da Bahia de Guanabara, marcavam a entrada.13

Hoje, inúmeros pesquisadores se dedicam a remontar a história daqueles 500 mil a 1 milhão de cativos que por ali passaram entre 1811 e 1861, trazidos para trabalhar nos engenhos de cana-de-açúcar, nas atividades de mineração e nas lavouras de café já no século XIX, quando finalmente, em 1831, foi extinto o tráfico atlântico de escravizados e, em 1888, teve fim o regime de escravidão no Brasil.

Na década de 1870, foi instalada na área, então chamada Praça Municipal, uma coluna circular de granito com caneluras, formada por 91 monólitos sobre pedestal circular também de granito, elevada sobre três degraus. Nessa coluna, foram colocadas quatro bicas e um tanque retangular. Encimada por um capitel coríntio, sobre ele foi colocada uma esfera armilar com as três setas que simbolizam o martírio de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, e que compõem as armas da cidade. Esse marco comemorativo da chegada da futura imperatriz foi inaugurado em 2 de dezembro de 1872 e se encontra até hoje no local, tendo sido retirados as bicas e o tanque que o compunham originalmente.



11. Ano em que o porto de escravos foi transferido da Praia do Peixe, atual Praça XV.
12. RIBEIRO, Flavia. Aventuras na História, 18 jan. 2013.
13. Portal IPHAN. Disponível em: <portal.iphan.gov.br>. jan. 2016. p. 34