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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


O ocaso do porto


Vista do centro do Rio de Janeiro durante a urbanização da esplanada do Castelo, que aparece ao centro como uma área vazia. Embaixo, à direita, o prédio da “Noite” e a Praça Mauá, ainda pouco urbanizada no início dos anos 1930. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Vista do centro do Rio de Janeiro durante a urbanização da esplanada do Castelo, que aparece ao centro como uma área vazia. Embaixo, à direita, o prédio da “Noite” e a Praça Mauá, ainda pouco urbanizada no início dos anos 1930. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

O século XX, com suas duas guerras mundiais, seus conflitos sociais, suas transformações tecnológicas, seus desafios econômicos e seus avanços culturais e comportamentais, traria, entretanto, grandes transformações urbanas.

A eclosão da Primeira Guerra Mundial, por exemplo, provocou um drástico decréscimo na exportação do café, ainda o maior alicerce da economia brasileira. Por outro lado, os recursos financeiros que antes saíam do país – seja para importações, turismo das classes abastadas e ainda remessas de dinheiro de imigrantes para suas famílias –, agora obrigados a permanecer aqui, foram aplicados na implantação de novas indústrias ou na ampliação das existentes. Este processo ocorreu principalmente no Rio de Janeiro, onde ainda ficava o maior parque industrial do país.

Em 1914, a multinacional holandesa Bunge y Born, presente no Brasil desde 30 de setembro de 1905, (...) adquire a S. A. Moinho Fluminense e passa a controlar a sua produção (...). Durante o início dos anos 1920, a empresa segue investindo em melhorias de suas instalações e equipamentos (...). Em 1923, terminadas as reformas no Moinho Fluminense, mesmo operando em capacidade máxima de moagem, a empresa mal consegue dar conta da demanda (...).38

Terminado o conflito, a estrutura econômica brasileira estava profundamente transformada, agora com uma burguesia industrial bem mais poderosa e articulada. Entretanto, a economia do país voltou a ser dependente do setor agroexportador, especialmente o café, que respondia por aproximadamente 70% das exportações brasileiras.

Era incontestável o poder dos “barões do café”, mas sua influência sobre o Estado foi marcada por intensos conflitos que envolviam não só a nova burguesia industrial, mas também o proletariado, agora numeroso e organizado em sindicatos.

Mesmo assim, nesse período tomado por movimentos grevistas, golpes e quarteladas, e sem contar com qualquer apoio do Estado, as indústrias se multiplicaram. Não mais concentradas na periferia da capital federal, mas também ao longo de áreas suburbanas e em cidades vizinhas à rodovia que ligava o Rio a São Paulo, que agora emergia como um novo e importante polo industrial: “ponto de convergência de variados caminhos e ferrovias (...) a cidade (fábricas de grande porte voltadas ao ramo alimentício (...). Em 1932, é implantada a Indústria Moinho Fluminense S.A., destinada à fabricação de farinha de trigo e, em 1937, a Cia. Industrial Comercial Brasileira de Produtos Alimentares (Nestlé).”39


Reformas urbanas e destruição do Morro do Castelo. Ao fundo, o Morro de Santo Antônio, hoje já quase todo destruído. Ao centro, a esplanada do Castelo e, à direita, o mercado e o arvoredo da Praça XV no início dos anos 1930. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Reformas urbanas e destruição do Morro do Castelo. Ao fundo, o Morro de Santo Antônio, hoje já quase todo destruído. Ao centro, a esplanada do Castelo e, à direita, o mercado e o arvoredo da Praça XV no início dos anos 1930. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

Num primeiro momento, o “crescimento do Rio de Janeiro deveu-se aos impostos arrecadados pela União e às taxas do comércio de exportação e importação das mercadorias que transitavam pelo porto carioca. Somem-se a isto os capitais excedentes da lavoura cafeeira situada na Baixada Fluminense e no Vale do Paraíba que eram aplicados na indústria”.40

No entanto, a partir da década de 1920, o Rio foi perdendo a condição de liderança para São Paulo, que apresentava características mais favoráveis ao impulso industrial. “O comércio do café promoveu uma grande concentração de bancos na capital paulista, criando um mercado de capitais. Somado a isto, desenvolveram-se centros de treinamento para o grande contingente de mão de obra que afluía para a cidade, constituído principalmente por imigrantes estrangeiros.”41

A competição com São Paulo foi progressivamente sendo perdida a partir da década de 1930, quando a hegemonia econômica do país muda finalmente de endereço, impactando fortemente as atividades portuárias do Rio.

Além disso, as condições de acesso ao porto foram ficando cada vez mais precárias. O lugar gradativamente foi envolvido e sufocado pelas outras atividades da cidade e sofria com os engarrafamentos permanentes, situação esta agravada pela política industrial brasileira de priorizar o setor automobilístico, naquele momento predominantemente instalado em São Paulo.

Não menos importante neste contexto de perdas sucessivas foi a transferência da capital do país para Brasília em 1960 e a anexação do Estado da Guanabara ao Estado do Rio de Janeiro alguns anos depois (1975). A perda do protagonismo da cidade, junto com o ocaso do porto, favoreceu o surgimento de uma zona boêmia na vizinhança da Praça Mauá, onde botequins, boates e “inferninhos” eram frequentados por estivadores e marinheiros de todas as nacionalidades.

É neste período que se notabiliza o “típico malandro carioca”, que, carregado de certo romantismo, foi imortalizado por letras de samba e até por produções cinematográficas como o Zé Carioca, de Walt Disney. De acordo com seu estereótipo, um verdadeiro malandro deveria usar chapéu palheta, calçar sapatos brancos, vestir camisa preta com listras brancas e sempre ter uma navalha no bolso do paletó. Ele é boêmio, vive de pequenos golpes, aprecia rodas de samba e não acredita no trabalho como um modo de vida confiável; é sentimental, galante e um amante invejável.

O mais famoso malandro do bairro foi, certamente, Manuel da Silva Abreu. Conhecido como “Zica, o Barão do Cais”, era um contraventor admirado por sua malandragem, coragem e ousadia, pois frequentava o Flórida Bar, local que tinha por clientela artistas e diretores da Rádio Nacional.

Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio.
Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção42

Nos anos 1950 e 1960, ocorreram as mais impactantes propostas para os velhos bairros portuários. Começaram a ser desenvolvidos projetos, em sua maioria de caráter viário de grande amplitude, que tinham por objetivo melhorar a circulação dos bairros ao sul e ao norte. Não seria mais necessário cruzar a área central, pois haveria uma alternativa para evitar vias congestionadas.

A ideia era ligar o Aterro do Flamengo à Avenida Brasil e, posteriormente, à Ponte Rio-Niterói; em seguida, construir viadutos conectando Laranjeiras, Santo Cristo e São Cristóvão (Linha Lilás), e Lagoa e Rio Comprido (Linha Vermelha).

A orla da zona portuária já era então percebida como área de retaguarda, fundos da cidade, local de atraso e obsolescência, sobretudo se comparada às áreas mais nobres da região central, localizadas no eixo das avenidas Rio Branco e Presidente Vargas.

Não seria de se estranhar, portanto, que esta região, considerada desimportante e decadente, tivesse sido escolhida como local de passagem de uma rede viária daquela magnitude. Foi assim que se instalou a ideia do complexo de vias elevadas, que ficou conhecido como Avenida Perimetral.

Praça Mauá,
praça feia, malfalada
Mulheres na madrugada
Onde bobo não tem vez
Praça Mauá
Dos lotações de subúrbio
Lugar comum do distúrbio
Nos trinta dias do mês
Se algum dia
Eu mandar nessa cidade
Serás praça da saudade
Do adeus, da emoção
Praça Mauá
O nome nos traz à mente
Um soluço, um beijo quente
E um lenço branco na mão43

Morro do Livramento no lado que dá para a Avenida Presidente Vargas. O lado oposto dá para o Moinho Fluminense, 1950. ACERVO AGCRJ/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Ao fundo, a pista do Aeroporto Santos Dumont e, logo a seguir, o antigo Mercado Municipal, destruído para dar vez ao elevado da Perimetral, ainda em construção no ano da fotografia, em 1962. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
I. Morro do Livramento no lado que dá para a Avenida Presidente Vargas. O lado oposto dá para o Moinho Fluminense, 1950. ACERVO AGCRJ/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
II. Ao fundo, a pista do Aeroporto Santos Dumont e, logo a seguir, o antigo Mercado Municipal, destruído para dar vez ao elevado da Perimetral, ainda em construção no ano da fotografia, em 1962. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE



38. Histórico do Moinho Fluminense. Centro de Memória Bunge, São Paulo.
39. LEÃO, Daniele Helena; PEREIRA, Denise de Alcântara. A industrialização e a produção do espaço em Barra Mansa: aspectos e conflitos socioespaciais e ambientais nos processos de desenvolvimento do Vale do Paraíba Fluminense. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Seropédica, 2019.
40. O café e a República: economia cafeeira – Parte 1. Disponível em: <https://www.mundovestibular.com.br/estudos/historia/o-cafe-e-a-republica-economia-cafeeira/>. Acesso em: mar. 2021.
41. Idem.
42. “Lenço no pescoço”, escrito por Wilson Batista em 1933.
43. Composição de Billy Blanco.