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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


A revolta da Vacina


Revolta da Vacina. Barricada de Porto Arthur da Saúde, montada em frente ao prédio do Moinho Fluminense. Revista da Semana, Rio de Janeiro, 1904. ACERVO REMINISCÊNCIAS
Revolta da Vacina. Barricada de Porto Arthur da Saúde, montada em frente ao prédio do Moinho Fluminense. Revista da Semana, Rio de Janeiro, 1904. ACERVO REMINISCÊNCIAS

Durante a Revolta da Vacina, a população monta barricadas em frente ao Moinho Fluminense contra a vacinação obrigatória instituída pelo diretor-geral de Saúde Pública, o médico Oswaldo Cruz.

Partiu de Oswaldo Cruz a ideia de apresentar ao Congresso Nacional um projeto para reinstaurar a obrigatoriedade da vacinação, que, apesar de já existir desde o século anterior, não era acatada. Pelo projeto, era permitido ao governo invadir, vistoriar e demolir casas e construções, e somente os vacinados conseguiriam vagas de trabalho, matrículas em escolas e celebração de atos. Para os conflitos surgidos, a norma previa a instituição de um tribunal próprio, conduzido por um juiz especialmente nomeado, e afastada a possibilidade de se recorrer à Justiça comum.

A medida era de interesse do governo, que detinha a maioria no Congresso, mas encontrava resistência na minoria, na imprensa e na população da cidade, traumatizada pela truculência da campanha anterior contra a febre amarela. Enquanto o governo alardeava a quantidade de casos da doença, que no Rio de Janeiro já alcançava a cifra de mais de 4 mil óbitos, a oposição apregoava que a lei brasileira assentia com a virulência dos agentes sanitários, que não eram confiáveis, e questionava o caráter obrigatório da vacina.  

A fórmula, fabricada com pústulas de vacas doentes, também gerava grande desconfiança e alimentava as crendices populares. Temia-se que a vacina atribuísse feição bovina aos que a tivessem tomado. Os negros a repeliam em razão da tradição do culto a Omolu, orixá a quem se atribuía o poder de espalhar doenças e, ao mesmo tempo, deixar imunes e sadios os seus seguidores através da realização de rituais. Estabelecer uma forma científica de evitar doenças significaria uma tentativa de ceifar o poder daquela divindade.

À insatisfação popular, aderiu a oposição oportunista dos monarquistas, que buscavam uma brecha para a retomada do poder, dos militares e dos republicanos tidos como mais radicais, todos reunidos em uma “coalizão estranha e explosiva”32 que se aproveitou da revolta inaugurada após a regulamentação da referida Lei de 9 de novembro de 1904 para tentar, dias depois, uma insurreição militar com o objetivo de depor o presidente Rodrigues Alves.

A manifestação popular, conhecida como a Revolta da Vacina, iniciou-se exatamente no dia 10 de novembro de 1904 e foi repelida de forma violenta pelo governo. A cavalaria avançava contra a multidão, os tiroteios eram intensos e as ruas do Centro foram fechadas por barricadas, uma delas em frente ao prédio do Moinho Fluminense, que também foi depredado pelos manifestantes; os bondes foram virados e postos policiais saqueados. Todavia, nada conseguia conter a população, que se armara de paus, restos de materiais retirados de obras e de rolhas e querosene fornecidos pelos comerciantes, também atingidos pelos efeitos da remodelação do espaço urbano.

O foco mais violento da revolta foi no bairro da Saúde. Os moradores, armados de carabinas e revólveres, bem providos de munição e bombas de dinamite, mantinham-se de prontidão protegidos por barricadas com 1 metro de altura, rudimentarmente construídas com sacos de areia, trilhos arrancados das linhas de bondes, veículos virados, troncos de árvores e fios de arame. No Largo dos Estivadores (na época, Largo do Depósito), foi onde ocorreu o último e violento embate, que deixou inúmeros feridos e mortos. O bairro, enquanto era bombardeado por mar pelo encouraçado Deodoro, viu-se cercado pelo 7º batalhão de infantaria, que avançava pela Praça da Harmonia. Era impossível fazer frente às forças do Estado: os rebeldes foram dominados e punidos.

Tamanha era a força do motim que o presidente Rodrigues Alves convocou em 14 de novembro de 1904 o Exército e a Marinha, mas os revoltosos já haviam se alastrado, o que abriu espaço para a tentativa de golpe militar, rapidamente contida pela decretação do estado de sítio dois dias depois. No mesmo dia, o governo revogaria a obrigatoriedade da vacina contra a varíola e o movimento popular refluiria até a completa extinção. 

A cidade que ressurgiu, conforme descrição de Nicolau Sevcenko,33 era irreconhecível: “calçamentos revolvidos, casas ruídas, janelas estilhaçadas, portas arrombadas, trilhos arrancados, restos de bondes, carros e carroças calcinados nas ruas, crateras de dinamite e petardos, ruínas de prédios incendiados, lâmpadas quebradas, postes, bancas, relógios, estátuas arrancadas, trincheiras improvisadas dos mais variados materiais, barreiras de arame farpado, perfurações de bala por toda parte, manchas de sangue, cavalos mortos, cinzas fumegantes.” O conflito deixara um saldo de trinta mortos, 110 feridos e cerca de mil detidos, além de centenas de deportados. A cidade tornara-se outra, não só pela destruição causada pelos embates, mas principalmente porque, marcada pela violência sofrida, permaneceu por um longo tempo amargurada por um clima de terror e vingança. 


32. SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. Coleção Tudo é História 89. São Paulo: Brasiliense, 1982.
33. Idem, p. 40