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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


Anos 1960


Fachada do Moinho Fluminense e estacionamento de automóveis de carga nos anos 1960. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Fachada do Moinho Fluminense e estacionamento de automóveis de carga nos anos 1960. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

Foi no período 1940-1960 que começou o vertiginoso crescimento das cidades. Nas décadas 1960-70, já havia ocorrido a inversão da proporção entre população campo-cidade44 no país, que durante 550 anos havia sido predominantemente rural. Associada a essa tendência, a presença do automóvel torna-se, indiscriminadamente, o elemento definidor dos projetos urbanos, fossem estes para novos ou antigos bairros.

À semelhança das grandes reformas urbanas realizadas por Pereira Passos no início do século XX, o prefeito Henrique Dodsworth, nomeado pelo presidente Getúlio Vargas em 1937, assumiu em sua gestão o mesmo estilo de “prefeito engenheiro”. Durante os oito anos de sua administração, realizou um extenso programa de obras viárias tendo em vista facilitar a circulação de carros na cidade, símbolo da modernidade.

Na área central, duas grandes obras, realizadas para desafogar a área do centro bancário da Avenida Rio Branco e oferecer uma nova possibilidade de expansão, provocaram enorme impacto, tanto no tecido urbano quanto no social, fazendo desaparecer importantes marcos culturais da cidade. A primeira obra durou apenas três anos, e em 1944 foi inaugurada a Avenida Presidente Vargas. A segunda foi a da Avenida Perimetral, com construção iniciada na década de 1950 e concluída apenas em 1968.

Partindo do argumento de que o Centro da cidade era cheio de ruas estreitas, insalubres, congestionado por linhas de bondes e afogado pelo trânsito dos pedestres, o prefeito empreendeu a abertura de uma monumental avenida com 80 metros de largura e 4 quilômetros de extensão, começando na Igreja da Candelária e terminando na Estação da Leopoldina.

Idealizada para se tornar o eixo central do novo sistema de circulação do Centro, a Avenida Presidente Vargas logo passou a ser símbolo do Estado Novo, palco ideal para a realização de paradas militares e grandes eventos políticos. Para complementar a grandiosidade da avenida, o governo federal mandou construir dois imponentes edifícios: o novo prédio da Central do Brasil e o suntuoso Palácio Duque de Caxias, sede do Ministério da Guerra, inaugurado em 1944.

Ao mesmo tempo, e com vistas a abrir espaço para estas obras, as demolidoras trabalhavam para mover todos os “obstáculos”, como quatro das mais antigas igrejas da cidade, entre elas a Igreja São Pedro dos Clérigos, uma joia barroca erguido em 1733, então tombada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Foram destruídos 581 imóveis, a maioria deles situados no bairro da Cidade Nova, onde ficava a Praça Onze, local de moradia popular que abrigava uma grande parte da população negra, expulsa da zona central pelas demolições de Pereira Passos, assim como milhares de imigrantes judeus do Leste Europeu, fugidos do regime tsarista e da Revolução Russa.

Refúgio de brancos, mulatos e negros, a Praça Onze era um raro exemplo de convivência e solidariedade num local com tal pluralismo étnico e cultural. Negros e judeus estudavam juntos na Escola Benjamin Constant. Na rua, onde funcionavam o Clube Juventude Israelita, a organização sionista Tiferet Tizón, sinagogas e restaurantes kosher, ficava a casa de Tia Ciata e de muitos outros moradores negros que, com a obra da avenida, se mudaram para o Morro da Conceição. Todos pertenciam à Pequena África, que se tornou marco da cultura negra e símbolo do carnaval de rua carioca.

A segunda grande obra, a Avenida Perimetral, começou a ser planejada no final da década de 1920, no período 1926-1930, por Alfred Agache, por solicitação do então prefeito da cidade, Antônio Prado Júnior. Seu traçado inicial passou por inúmeras modificações até que, em 1956, foi finalmente decidido executar o projeto desenvolvido no Departamento de Urbanismo da Secretaria de Obras por Affonso Eduardo Reidy e Edwaldo Vasconcelos.

Erguida entre 1957 e 1978 como alternativa às vias congestionadas, visava melhorar a circulação dos bairros ao sul e ao norte, que não mais necessitariam entrar na área central. Medindo 4.750 metros de extensão, com largura média de 15 metros (quatro faixas, duas por sentido), o elevado da Perimetral foi construído a cerca de sete metros do chão sobre praças, ruas e edifícios, todos derrubados para lhe dar passagem.

Tratava-se de uma autopista elevada que contornaria o Centro do Rio de Janeiro ao longo da orla da baía, com partes subterrâneas, rampas, rótulas e viadutos. Por questões de custo, a obra terminou sendo toda elevada, causando grande impacto paisagístico no cenário urbano, isolando impiedosamente o núcleo mais tradicional da cidade da frente marítima da Baía de Guanabara.

A decisão de dar início à sua execução foi envolta por inúmeras discordâncias, com veementes protestos vindos de entidades como o Clube da Aeronáutica e a Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, o mais afetado sendo seguramente o monumental Mercado Municipal Praça XV.

Nos planos de reurbanização da área, previa-se a total demolição do mercado, mas não havia previsão de recursos para sua reinstalação em outro local. Essa informação caiu como uma bomba entre os comerciantes e criou um clima de intranquilidade e inconformismo, pois envolvia o destino de 10 mil famílias. O Mercado Municipal terminou sendo demolido em 1962, mas dele restou vestígio: uma de suas cinco torres ficou de pé, resistente, a do Albamar, tombada como patrimônio cultural do Estado do Rio de Janeiro.

Sua construção se prolongou por dez governos ao longo de vinte anos, tendo sido inaugurada duas vezes pelos presidentes Juscelino Kubitschek, em 1960, cujo trecho entre o Museu Histórico Nacional e a Candelária levaria seu nome, e por Ernesto Geisel, em 1978. Por dezesseis anos a obra foi objeto de polêmicas, até que o então prefeito Luiz Paulo Conde, em 1997, propôs sua demolição.

Com essas duas grandes obras, o carro se tornaria o protagonista da cena urbana da região central da cidade. O andar a pé, a relação amigável do térreo dos edifícios com as ruas e a paisagem, atributos valorizados no bom ambiente urbano, foram esquecidos pelos que desenvolveram tais projetos. O ocaso do antigo porto era inexorável, já que as principais atividades alfandegárias haviam se deslocado para o bairro do Caju, no Rio. No entanto, foram outros fatores que influenciaram na definitiva marginalização da zona portuária.

No início da urbanização dessa região, a cordilheira formada pelos morros de São Bento, da Conceição, do Livramento, da Providência, do Pinto e de São Diogo constituía uma barreira física que separava os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo do resto da cidade. Mesmo que tenham sido abertas ruas nos vales entre os morros, outras barreiras haviam sido interpostas: a estrada de ferro e, anos depois, a Avenida Presidente Vargas, uma via de tráfego intenso.

Com a construção da Avenida Perimetral, extensa via elevada entre o porto e a baía, não só foi encoberta a vista para o mar, como foi criado, à sombra dos viadutos, um local adequado à proliferação de toda sorte de atividade degradante. Não era fácil subsistir em tais condições, principalmente por não ter havido um programa de recuperação dos bairros, revertendo sua decadência e superando a marginalização da região.

Some-se a isso a transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília, inaugurada em 21 de abril de 1960, empreendida pelo então presidente, o mineiro Juscelino Kubitschek. A mudança causou um profundo revés na economia da cidade do Rio de Janeiro, que deixou de ter acesso a 80% da arrecadação da Região Metropolitana, que era destinada, por lei, aos limites do município do Rio de Janeiro, excluindo-se a Baixada Fluminense.

A população, ainda convivendo com obras que redesenhavam o seu espaço urbano e acostumada com as glórias da imagem da cidade, estereotipada pelos estrangeiros como local de carnaval, mulheres bonitas e futebol, não percebeu o seu despreparo para enfrentar o que se seguiu: a década perdida dos anos 1970.  [II]

A situação de obsolescência antiga da região portuária se tornou ainda mais dramática com a nova tecnologia de funcionamento dos portos. Mudava o sistema de armazenagem e transferência dos armazéns de cais lineares e guindastes. O novo sistema envolvia contêineres e pátios, e isto era o que faltava na área.

Com a região portuária afogada no trânsito geral da cidade e deficiente de grandes terrenos para o armazenamento dos contêineres, o porto do Rio começou lentamente a se transferir para o bairro do Caju, onde havia espaço disponível para o crescimento e maior facilidade de acessos.

Vai-se o porto, ficam os armazéns, em grande parte vazios. Alguns invadidos por moradores sem teto, outros ocupados por barracões de escolas de samba, outros cedidos para os mais diversos fins, que em nada colaboravam para o dinamismo perdido da área.

O cenário de abandono e a escala do problema intimidavam qualquer iniciativa de novas ocupações, o que era agravado pelas dimensões avantajadas das estruturas e a insegurança da área. O descaso com a área era flagrante: nos anos 1990, a região portuária era considerada pelo órgão técnico da Prefeitura responsável pela iluminação pública, a Rioluz, o local mais mal iluminado de toda a cidade. À noite, era sombrio e vazio. E lá ainda viviam cerca de 22 mil habitantes, a maioria na pequena cordilheira de montanhas que separa a zona portuária da cidade.

O descaso refletia-se por todos os lados e horários, nas calçadas sem árvores, nas velhas e obsoletas redes de esgoto e de drenagem, nas épicas inundações, nas praças sem conservação, nos lixões a céu aberto, no asfalto esburacado, nos velhos sobrados em ruínas, nos pátios e vias ferroviários em desuso.

O porto do Rio, que iniciara o século debaixo de glórias e promessas de um futuro brilhante, chegava a meados dos anos 1970 como um lugar estigmatizado e deixado à margem do restante da metrópole.

[II]
A empresa (Moinho Fluminense) segue, ao longo dos anos 1970, com a estratégia de modernização constante de instalações e equipamentos. Ao final da década, o trigo está sendo descarregado diretamente dos navios em um sistema pneumático, que conduz a uma esteira transportadora instalada no túnel sob o leito do cais do porto e da Avenida Rodrigues Alves, até o silo. 

(Histórico do Moinho Fluminense. Centro de Memória Bunge, São Paulo)



44. Em 1960, a população urbana é de 32.004.817 habitantes e a população rural, 38.987.526. Já em 1970, a população urbana é de 52.904.744 habitantes, enquanto a população rural é de 41.603.834.