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Maria Pace Chiavari


Arquitetura versus tecnologia


Esta imagem, do início do século XX, talvez a mais antiga ilustração do Moinho Fluminense, apresenta uma nítida leitura do primeiro projeto. A fachada, na Rua da Saúde, está acrescida por um imóvel de três andares destinado à administração da empresa, anexado em 1896. A fotografia data do ano 1909 e a autoria é de Luiz Musso & Irmão, responsável pela documentação do conjunto de obras de Antonio Jannuzzi. ACERVO MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Esta imagem, do início do século XX, talvez a mais antiga ilustração do Moinho Fluminense, apresenta uma nítida leitura do primeiro projeto. A fachada, na Rua da Saúde, está acrescida por um imóvel de três andares destinado à administração da empresa, anexado em 1896. A fotografia data do ano 1909 e a autoria é de Luiz Musso & Irmão, responsável pela documentação do conjunto de obras de Antonio Jannuzzi. ACERVO MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

As inovações tecnológicas introduzidas no processo de moagem de trigo transparecem nos projetos das construções dos modernos moinhos.

À diferença do passado, quando as edificações destinadas a esse uso se confundiam com as casas rurais, as exigências impostas pela nova organização de trabalho se refletem na escala de grandeza assumida pelos respectivos estabelecimentos. Nesses, encontram lugar os articulados maquinários necessários à moagem da farinha, os silos destinados ao armazenamento da matéria-prima, os espaços destinados às diferentes fases da produção – como limpeza e ensacagem – e a própria administração.

Nessa época, a relação arquitetura-indústria representa um dos assuntos mais discutidos e controversos no âmbito dos animados debates dos arquitetos europeus.12 Por muito tempo, parecia que, nas primeiras edificações de caráter industrial, a arquitetura de ferro tinha assumido o monopólio. Deixou-se, assim, cair no esquecimento o importante papel desenvolvido por outros materiais, como a terra, a madeira e o cimento. Mas o tijolo maciço, uma vez aperfeiçoada sua fabricação, passou a compor as fachadas das edificações industriais inglesas, chegando à peculiaridade do estilo vitoriano.

Não era raro que, na Europa, como nas Américas, os produtos industrializados, provenientes da Inglaterra, chegassem acompanhados por modelos arquitetônicos onde se faziam diferentes usos do tijolo. Destaca-se, entre os mais admirados exemplos desse feliz acoplamento tijolo-indústria, o moinho Stucky em Veneza.13

No Brasil, entre o final do século XIX e o início do século XX, encontram-se dois moinhos baseados em modelos ingleses: o Moinho Fluminense, no Rio de Janeiro, e o Moinho Central Matarazzo, em São Paulo.14

Em 1876, no Rio de Janeiro, começa a ser construído o Moinho Inglês, uma das primeiras usinas destinadas à fabricação de farinha no Brasil.15 Para sua implantação, é escolhido um trecho do litoral aos pés do Morro da Saúde, entre o antigo Saco do Valongo, então designado como Saúde, e o da Gamboa.16

A partir do projeto arquitetônico, realizado por engenheiros ingleses, a edificação seguiu a mais moderna lógica estrutural com o objetivo de obter o máximo de sua capacidade produtiva.  [IV]

Sala de machinas: transformadores e motor de 850HP, 300 e 200HP. Foto de M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Sala de machinas: transformadores e motor de 850HP, 300 e 200HP. Foto de M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

Às suas qualidades intrínsecas se acrescentou o papel de protagonista a ele atribuído pelos investidores, de forma a enfatizar o nível alcançado pela tecnologia inglesa. A intenção era ganhar a confiança do governo brasileiro em benefício do projeto de requalificação e reestruturação do porto do Rio de Janeiro. Do outro lado da baía, no início do século XX, foi construído, pela firma alemã Herm Stoltz, outro concorrente do Moinho Fluminense, o Moinho Santa Cruz, na Ponta d’Areia, em Niterói.

O que diferenciou o Moinho Fluminense dos outros foi o processo de sua concepção. Os primeiros nasceram grandes, projetados para produzir o máximo do que era possível alcançar pela então estrutura industrial, mas tiveram vida breve. O crescimento do Moinho Fluminense em relação aos anteriores foi progressivo, e a história do seu desenvolvimento se alongou pelos 130 anos de vida útil.

[IV]
O sistema de divisão de grãos e de transporte

O novo sistema de classificação da farinha segundo o tipo desejado é obtido a partir de grãos de diferentes tamanhos. Para obter tal divisão dos grãos, vale-se do movimento de rotação e oscilação de um sistema de véus (peneiras). Dessa forma, a farinha é separada por diferentes classes e cada uma dessas se dirige ao correspondente silo, onde é guardada para depois ser ensacada para venda. No articulado trajeto, o transporte do material, desde os grãos de trigo aos diferentes tipos de farinha produzida, vale-se, na parte linear, de correias de transmissão, enquanto, em subida e descida, recorre a elevadores em forma de xícara. 

Peneiras centrífugas. Foto de M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGEBombas de sucção. Foto de M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
I. Peneiras centrífugas. Foto de M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE 
II. Bombas de sucção. Foto de M. Rosenfeld, 1936. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE 


12. BARIDON, Laurent. L’imaginaire scientifique de Viollet-le-Duc. Paris: L’Harmattan, 1996. p. 198.
13.Tal construção, em estilo neogótico, com fachadas em tijolos maciços, equipada pelas modernas tecnologias inglesas, surge da iniciativa do empreendedor e financeiro Giovanni Stucky, de origem suíça, entre 1884 e 1895, na ilha da Giudecca.
14. O Moinho Matarazzo, localizado no bairro do Brás, zona central da cidade de São Paulo, foi implodido, em 2012, na gestão Gilberto Kassab.
15.TURAZZI, Maria Inez (Org.). Um porto para o Rio. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012. p. 242; e FONSECA, Thiago Vinicius Mantuano de. Comendador Antônio Martin Lage: entre navegação e operação portuária no século XIX. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2017. Disponível em: <https://www.historia.uff.br/stricto/td/2119.pdf>. Acesso em: mar. 2021.
16. LAMARÃO, Sergio Tadeu de Niemeyer. Dos trapiches ao porto: um estudo sobre as áreas portuárias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes. Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural. Divisão de Editoração, Biblioteca Carioca, 1991.