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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


O que é que a Gamboa tem?


Dizer em toda sua extensão o que a Gamboa tem não é tarefa fácil. No meio do caminho da longa costa, antes caprichosa, da baía, e tornada uma imensa reta pela engenharia humana, ela ainda está lá onde sempre esteve, principalmente o seu cais, com os imponentes e altivos guindastes, hoje eternizados como grandes esculturas do skyline do novo porto.

Mas há também quase ocultos outros testemunhos – materiais e imateriais – dos primeiros colonos, dos cortesãos ultramarinos, dos tristes e trágicos navios de escravizados, do povaréu aterrado por tantas balas de canhões disparadas pelos corsários franceses, dos atemorizados imigrantes buscando oportunidades em uma terra nova, úmida e quente, até os últimos turistas em busca de emoções festivas, das cargas e descargas de mercadorias, do café aos automóveis. Ali se ajudou a formar a história do povo e da economia do Brasil.

Para entender o que é a Gamboa, é preciso se deixar levar, conduzido por estas memórias e outras mais e por sua geografia imperfeita de terra desbravada à força, das antigas enseadas e praias, dos mangues ressecados que se evaporaram sob os aterros do porto moderno, de encostas de pedras que se perderam por trás das muralhas dos edifícios que por ali foram se elevando.

Jardins do Valongo. Foto de Mauricio Hora, 2021.Sítio Arqueológico do Valongo. Foto de Mauricio Hora, 2021.
I. Jardins do Valongo. Foto de Mauricio Hora, 2021.
II. Sítio Arqueológico do Valongo. Foto de Mauricio Hora, 2021.

Gamboa feita de sussurros e choros suspirados dos antigos cemitérios de pretos e dos navios de escravizados que nos seus trapiches deixavam quase morta esta humanidade arrancada da sua longínqua terra.

Gamboa das sombras que, volta e meia, nos assombram. É preciso caminhar a esmo por suas ruas e becos, sem buscar monumentos ou conjuntos arquitetônicos que normalmente admiramos em cidades históricas, sem esperar pela harmonia do conjunto edificado e sem a unidade que nele se encontra. Território essencialmente histórico e de memória, que deve ser percebido como um espaço sempre em mutação, no qual a diversidade nos assola a cada esquina.

O encanto dos bairros portuários do Rio não está em suas ruas e seus pequenos sobrados, nos seus morros altos, onde deve ter brincado Machado de Assis. Não há ali paisagem homogênea, pontos turísticos ou estilo de vida. Como aconteceu ao grande mestre Antonio Carlos Jobim, é possível estar em qualquer outro lugar do mundo e sentir, como um sopro, a saudade da “coisa louca” que vem lá da Gamboa:

Quando ando pelo Soho
Eu me lembro da Gamboa
Ai, ai, ai, que coisa louca
Ah, meu Deus, que coisa boa
Lá por trás do Cais do Porto
Na Ladeira da Preguiça
Onde otário nasce morto
Onde só dá gente boa
Quem não sabe o que é saudade
Não conhece esse dilema
Não provou desse veneno
Nunca teve uma morena
Ah, meu Deus, que bom
Te encontrar nessa cidade
Quando dobro a esquina
Dou de cara com a saudade
Ai, ai, ai, que coisa louca
Ai, meu Deus, que coisa boa53

A Gamboa é da memória e da história. É imaterial, mas também concreta. Nela há um moinho, de estrutura metálica e paredes de tijolos aparentes, com grifos a proteger sua fachada. Único na cidade, majestoso, de moagem e empacotamento de trigo e farinha, como aqueles da antiga Revolução Industrial inglesa, poderia muito bem estar no cenário de um romance de Dickens.

Provavelmente, os irmãos Gianelli, Carlos e Leopoldo, uruguaios, de ascendência italiana, após baixarem, em 1880, do navio na Praça Mauá com o intuito de expandir seus empreendimentos de moagem de trigo e fabrico de farinha no Brasil, se encantaram com a famosa Rua Larga de São Joaquim, atual Marechal Floriano, e decidiram ali sentar praça com sua indústria.

Lá, entretanto, não fixaram endereço, pois logo se mudariam para a Praça da Harmonia, não muito distante e mais perto do cais, naquele momento sob o impacto da renovação e da operação do porto do Rio, resultante do aterro da doca do mercado outrora existente. A Praça da Harmonia, um pequeno oásis em plena área do porto do Rio, escondida pela geografia labiríntica, é hoje atravessada pelo VLT – que recuperou o antigo sonho de integrar os bairros portuários entre si, e esses com a cidade.

Naquela localidade, reúnem-se alguns dos mais interessantes acontecimentos históricos e conjuntos arquitetônicos da região e mesmo da cidade gravados no espaço limitado pelo corredor de pequenos sobrados de arquitetura eclética (cerca de 1900), vários adornados com painéis (1960) de bucólica pintura naïf do pintor Nilton Bravo. Bem ali, a singela igreja barroca de N. S. da Saúde (1743), assentada em seu modesto promontório com visíveis sinais da antiga pedreira da Saúde, cedeu suas pedras para o lastro de construções locais e, sobre seus despojos, eleva-se o charmoso conjunto arquitetônico contemporâneo Moradas da Saúde, com 150 casas “lego” dos arquitetos Demetre Anastassakis e Claudia Pires (2000).

O percurso nos leva ainda a admirar a imponência discreta do quartel do Quinto Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro (1908-1914), do arquiteto Heitor de Melo, que mais parece um pequeno castelo com sua torre e seu correr de janela, de onde se contempla, no centro da praça, o busto do herói da Guerra do Paraguai, Coronel Assunção, guardado por um cão e um canhão; a fachada geométrica do Abrigo da Boa Vontade (1939), saída do traço do arquiteto modernista Affonso Eduardo Reidy, e as recentes instalações recicladas do novo Aquário do Rio (2016), do arquiteto Alcides Horácio de Azevedo, ali próximas.

No meio desse conjunto e dominando todos por sua escala portentosa, reina a serena beleza do imponente prédio industrial do Moinho Fluminense (1887/1927), com seus grifos protetores, de gosto eclético industrial, dos arquitetos Antonio Jannuzzi e irmão. Estes dois irmãos, italianos imigrantes, seriam os responsáveis pela construção de uma das edificações mais presentes no imaginário da cidade: o belo Moinho Fluminense, que juntaria no coração escondido do porto, como o Aleph, de Borges, todas as coisas numa só coisa, e para sempre: a Baía de Guanabara, a cidade do Rio de Janeiro, o porto, a região portuária, o bairro da Gamboa, a Praça da Harmonia, o belo moinho e a história do trigo no Brasil.

Cada coisa (...) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, via a aurora e a tarde, via as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um roto labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da Rua Soler os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão duma casa de Frey Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listras de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia (...) vi o Aleph de todos os pontos, vi no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras (...). Senti infinita veneração, infinita lástima.54

Vista aérea da Gamboa. Foto de Mauricio Hora, 2021.
Vista aérea da Gamboa. Foto de Mauricio Hora, 2021. 



53. “Samba do Soho”, de Tom Jobim.
54. BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Rio de Janeiro: Globo, 1973. p. 133-134.