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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


Preâmbulo


Grifo, em registro fotográfico de 1926. Foto de M. Rosenfeld. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Grifo, em registro fotográfico de 1926. Foto de M. Rosenfeld. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE 

Foi em uma imponente edificação situada na Rua Sacadura Cabral, nº 290, bairro da Gamboa, no Rio de Janeiro, que o Moinho Fluminense funcionou durante pouco mais de 130 anos.

Inspirado em fábricas inglesas da era da Revolução Industrial, ele se impôs não como simples objeto físico, mas como um lugar de referência para a cidade e para a comunidade da região. Ao longo de mais de um século, a fábrica passou a fazer parte da história coletiva dos cariocas, fossem eles de fato nascidos no Rio de Janeiro ou imigrantes que optaram por viver na cidade, muitos dos quais ali trabalhavam, inclusive seus primeiros donos, membros da comunidade italiana do Rio.

Provavelmente, na época, ao término da obra, a população local reagiu com certo estranhamento ao ver aquele prédio de muros altos, enormes silos e chaminés que sobressaíam, altas e poderosas, contrastando com o resto da cidade, onde ainda predominavam os sobrados. Chamava especial atenção em ambos os lados do nome MOINHO FLUMINENSE, impresso na fachada principal, a imagem de um ser assustador e intrigante jamais visto por estas terras tropicais: um animal com cabeça, penas douradas e patas dianteiras de águia, mas com o corpo e as patas traseiras semelhantes aos de um leão. Desconhecia-se ainda a figura mitológica e lendária de um grifo, cujo nome vem do grego gryphos, que significa “leão águia”.

Não por acaso, talvez, os arquitetos e os proprietários da indústria haviam escolhido tal imagem para representar o empreendimento. Na mitologia grega, os grifos simbolizavam poder, proteção e lealdade, mas também, na cultura popular europeia, representavam as virtudes da sabedoria e da força. Era, portanto, o símbolo adequado para uma fábrica que trabalharia com a moagem do trigo, grão historicamente associado à exaltação da vida e adotado como alegoria em várias religiões.

Entre os egípcios, o surgimento do trigo era atribuído à poderosa deusa Ísis, cultuada como modelo de mãe e esposa ideal, protetora da natureza e da magia; e, entre os fenícios, a Dagom, Deus dos grãos ou da produção agrícola. Os hindus associavam o trigo a Brama, representação da força criadora ativa no universo; os árabes, a São Miguel; e os cristãos, a Deus.

Não há consenso quanto à origem do grão, embora registros arqueológicos localizados no sudoeste da Ásia permitam intuir que o surgimento se deu há aproximadamente 15 mil anos antes de Cristo. Algumas fontes indicam que o consumo do trigo teve início em sua forma bruta, removendo-se apenas a capa fibrosa do grão, por meio do calor, seja do fogo ou do sol. Outros pesquisadores mencionam que, em sua origem, o trigo seria consumido após ser “estourado”, como fazemos hoje ao aquecer o grão de milho para fazer pipoca.

Mais fidedigna, por outro lado, é a origem do pão. Tumbas com hieróglifos descobertas ao longo do Rio Nilo registram não só o plantio, a colheita e a moagem do trigo, como a fabricação do pão no Oriente Médio, feito originalmente com farinha branca, obtida após a peneiração dos grãos triturados, aos quais era agregado o fruto do carvalho. Duros e secos, não podiam ser imediatamente consumidos, porque eram muito amargos. Após o preparo da massa, eram assados sobre pedras quentes ou debaixo de cinzas. Somente por volta do ano 7000 a.C. é que os egípcios teriam começado a assar o pão em fornos de barro, que, naquela época, chegavam a ocupar uma área do tamanho de um campo de futebol atual.

No entanto, a primeira padaria só teria surgido em cerca de 3000 a.C., na cidade de Gizé, Egito. Os egípcios davam tanta importância ao pão, que cada faraó tinha a sua própria padaria, sempre enterrada com eles. Esse fascínio pelo alimento, inclusive, levou os gregos a apelidarem os egípcios de arthophagoi, cuja tradução é “comedores de pão”. Tão estreita era a relação entre o pão e o poder, para aquele povo, que ao alimento foi atribuída uma valoração monetária que lhe permitia ser utilizado como meio de pagamento: um dia de trabalho valia três pães e duas canecas de cerveja.

Geograficamente favorecido e mantendo intenso comércio com algumas ilhas da Grécia, o Egito também teria sido o responsável pela chegada do pão à Europa em 250 a.C., e o produto logo se tornou o principal alimento da Roma Antiga. Provavelmente em virtude de ensinamentos gregos, os romanos preparavam os pães em padarias públicas, utilizando levedo extraído da espuma contida nas cubas de vinho, depois substituído pelo fermento oriundo da fabricação da cerveja, o que melhorou consideravelmente as suas características.

Foi em Roma que se deu o surgimento da primeira associação oficial de panificadores, cujos membros eram considerados privilegiados e agraciados com a isenção de alguns deveres e do pagamento de impostos. A fabricação do pão era tida pelos romanos como uma arte do patamar das esculturas, arquitetura e literatura. Iniciada a Idade Média, com a queda do Império Romano, as padarias públicas foram fechadas e a produção do pão passou a ser apenas caseira. Ao longo desse período, os saberes relacionados à fabricação do pão foram sendo esquecidos, chegando-se até a abandonar a fermentação do trigo, o que resultou num imenso retrocesso em sua qualidade.

A retomada da evolução da produção do pão ocorreria apenas no século XII, na França. Cinco séculos depois, e em razão da adoção de técnicas aprimoradas, a França se consagraria como centro mundial na fabricação do pão. No século XVI, momento em que os portugueses aportaram pela primeira vez no Brasil, o pão e outros subprodutos do trigo já eram bastante conhecidos entre os colonizadores, mas até serem processados em grande escala, como na Europa, muita história ocorreria nas novas terras. E a do Rio se iniciaria com as caravelas chegando ao Morro Cara de Cão.

Mais quatrocentos anos se passariam até que o pioneiro Moinho Fluminense se instalasse com suas máquinas e silos no bairro portuário da Gamboa para moer, estocar, processar e despachar o trigo. Ali, na Praça da Harmonia, deixaria para sempre suas marcas na história e no imaginário da metrópole.