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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


Um novo porto para um novo século


O Largo da Prainha transformou-se na Praça Mauá, após as obras realizadas durante o governo Pereira Passos. Registo realizado em 1910. Foto de Augusto Malta. ACERVO MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
O Largo da Prainha transformou-se na Praça Mauá, após as obras realizadas durante o governo Pereira Passos. Registo realizado em 1910. Foto de Augusto Malta. ACERVO MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

O principal cartão-postal do país era o novo Rio de Janeiro tal como exibido na sua majestosa e longa Avenida Central. Porém, a mais ambiciosa proposta, concretizada na onda das reformas e da modernização da cidade, foi a construção do novo porto. Encetada por iniciativa do governo do presidente Rodrigues Alves (1902-1906), a obra, considerada a maior intervenção portuária do mundo até então, rivalizando com o Puerto Madero portenho, consistiu na extinção dos trapiches, canalização do Mangue (e consequente desaparecimento das praias de São Cristóvão e Formosa, juntamente com as ilhas dos Melões e das Moças), e ainda a anexação dos Bairros de Santo Cristo a São Cristóvão, a criação de área urbana por meio do aterramento de cerca de 5 milhões de metros quadrados, inclusive das enseadas da Saúde e da Gamboa, onde foi construído um cais.

Dividida em grandes lotes, pouco a pouco a área foi sendo ocupada por armazéns. Muitos deles ainda lá se encontram, principalmente os dezoito localizados ao longo do novo cais de pedra. Com 5 quilômetros de comprimento, o cais se estendia entre a antiga Prainha, hoje Praça Mauá, e a saída do então construído Canal do Mangue, que deu origem à Avenida Francisco Bicalho. A maior parte do aterro era proveniente da terra que veio do desmonte do Morro do Senado, não muito distante. Aterros e desmontes de morros, aliás, eram uma atividade muito conhecida dos cariocas desde os tempos mais remotos da colonização.

À espera da chegada do navio. A Praça Mauá depois da urbanização, em 1910. ACERVO AGCRJ – ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
À espera da chegada do navio. A Praça Mauá depois da urbanização, em 1910. ACERVO AGCRJ – ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE

O novo sistema de embarque e desembarque de mercadorias do porto passou a ser realizado por meio de guindastes, em substituição ao sistema primitivo feito por chalupas e canoas entre os navios e o cais, e muito dependente da força de trabalho.

Sob o comando do Ministério da Viação, Transportes e Obras Públicas, sendo Lauro Muller o seu responsável, contando com o auxílio técnico de Francisco Bicalho, a região portuária – não restrita ao porto em si, mas englobando as regiões da Saúde, Gamboa e Santo Cristo – passa a operar a partir de uma nova lógica de integração. Já em 1903 há uma enxurrada de decretos direcionados para a realização das obras, que deram brechas para a entrada do capital inglês nesta empreitada. (...) Vista a grande magnitude desta intervenção, o Presidente Rodrigues Alves receberia no seu mandato a primeira parte da obra em 1906, a conclusão ocorreu apenas em 1911.34

Linhas férreas exclusivas foram construídas apenas para servir ao transporte das mercadorias entre os armazéns externos e o cais, e um novo túnel foi aberto sob o Morro da Providência para interligar as linhas da Estrada de Ferro Central do Brasil com o terminal marítimo da Gamboa. Embora ainda pouco permeável às áreas dos três bairros portuários, começaram a se articular com o restante da cidade. Segregados ficaram apenas os dezoito armazéns alfandegados junto ao novo cais da Gamboa. Todo o restante da área ficou disponível para interação com as mais diversas funções urbanas: indústrias, comércios, estocagem, terminais de transportes e até moradias, como os conjuntos de cooperados de atividades ligadas ao porto, como a Vila Operária da Gamboa.

Localizada nos números 150-160 da Rua Barão da Gamboa, a Vila Operária da Gamboa foi construída em 1930-33 a partir de projeto dos arquitetos Lucio Costa – que, nessa época, liderava o movimento da Arquitetura Moderna no Brasil – e Gregori Warchavchik (russo sediado em São Paulo), considerado o pioneiro da arquitetura moderna na América Latina. Tratava-se de um projeto para habitação multifamiliar de interesse popular e tornou-se um dos primeiros exemplares do movimento moderno no Brasil, sendo, por isso, tombado pela Prefeitura como patrimônio em 1986.

Festejadíssimo como um novo símbolo do progresso brasileiro, o porto do Rio juntou-se, em 1910, às imagens das modernas Avenidas Rodrigues Alves, polo de produção, da Avenida Central, núcleo comercial, e da Avenida Beira-Mar, extensão dos espaços de moradias afluentes ao sul. Símbolo desse período foi o charmoso ônibus de dois andares semelhante ao modelo inglês, logo apelidado pelos cariocas de “Chopp Duplo”. Circulou no Rio de Janeiro entre as décadas de 1920 e 1930 com duas linhas: Clube Naval-Leme e Copacabana-Praça Mauá. Era um sucesso.

A modernização do porto trouxe consigo uma onda de investimentos na região. A antiga Praça da Prainha foi reformada, recebendo paisagismo em estilo belle époque, tendo ao centro uma coluna encimada pela escultura de Visconde de Mauá, de autoria de Rodolfo Bernardelli. Assim embelezada, passou a ter o nome de Praça Mauá, local nobre onde aportavam os transatlânticos trazendo estrangeiros, personalidades políticas e culturais, num período em que a cidade buscava se tornar um polo turístico. Nessa mesma época, foi inaugurado também o edifício da Inspetoria Federal de Portos e, em seguida, o famoso Edifício A Noite.

Tive um tio português, chofer de táxi, com ponto na Praça Mauá. Chamava-se José Moita. Chegou ao Rio vindo do Porto nos anos 1910. Sentou-se a um volante, do qual nunca mais saiu (...). Mas o centro de seu trabalho e de sua vida era a Praça Mauá. Coração da zona portuária, ela devia lembrar-lhe os velhos cais de Portugal de onde seus tataravós podem ter partido rumo a terras estranhas, quando os navios não tinham motores nem bússolas. A Praça Mauá era o centro do Rio – dela começava a numeração das ruas. Para tio Zé, era o mundo que partia dela.35

Foi o jornalista Irineu Marinho (1876-1925) quem empreendeu a construção do edifício para sediar seu jornal A Noite. Na Praça Mauá, nº 7, deu início à construção de um prédio com 22 pavimentos e estrutura em concreto armado (material inovador na época). Para o projeto, contratou os arquitetos Belisiário da Cunha Bahiana, de tendência art déco, e o francês Joseph Gire, formado pela École Nationale Supérieure des Beaux-Arts de Paris, que, entre 1916 e 1933, trabalhou intensamente na cidade, sendo também autor do Copacabana Palace, do Hotel Glória e do Palácio Laranjeiras. A empreitada, entretanto, foi além das possibilidades do proprietário do jornal, que o vendeu para outro investidor. A sede do jornal foi obrigada a ocupar poucos andares, dividindo o prédio com sedes de empresas como Philips e Pan Am, as agências de notícias La Prensa e United Press Association, os consulados dos Estados Unidos e Canadá, além dos estúdios da antiga Rádio Nacional.

A Rádio Nacional do Rio de Janeiro funciona, desde a sua fundação, no prédio no Centro do Rio. Ocupa hoje apenas dois andares: 20º e 21º, famosa pela produção de novelas e divulgação de artistas nacionais como Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Marlene, Cauby Peixoto e Radamés Gnatalli, eternamente associados à época em que o prédio era foco de uma vida alegre e boêmia.36

De seu canto na praça, assistiu à chegada, por mar ou por terra, de milhares de imigrantes, com seus medos e esperanças. Em 1929, viu subir os 22 andares do edifício de “A Noite” e, 15 anos depois, a Rádio Nacional esmagar a concorrência – às vezes transportava Linda Baptista, Marlene, Nora Ney, mas quem lhe dava mesmo água na boca era Angela Maria. A Praça Mauá tinha uma história lírica, cosmopolita, meio bandida, e ele fazia parte dela.37

Tendo a Praça Mauá e a Cinelândia como eixo estruturador, esse espaço serviria para compor uma nova paisagem, finalmente remodelada e ordenada, que seria o novo cartão-postal da recém-nascida República brasileira e de sua rejuvenescida capital federal, deixando para trás a imagem do velho e atrasado passado colonial.


Cais de desembarque da Praça Mauá. A construção do porto do Rio de Janeiro foi fundamental para apoiar o desenvolvimento industrial e mercantil da cidade. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
Trapiche Mauá, no Largo da Prainha, atual Praça Mauá. Desembarque de passageiros em 1906. ACERVO MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
I. Cais de desembarque da Praça Mauá. A construção do porto do Rio de Janeiro foi fundamental para apoiar o desenvolvimento industrial e mercantil da cidade. ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE
II. Trapiche Mauá, no Largo da Prainha, atual Praça Mauá. Desembarque de passageiros em 1906. ACERVO MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM/CENTRO DE MEMÓRIA BUNGE


34. GOMES FERREIRA, Ingrid. As reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX/XXI: o porto em questão. Anais do 2º Encontro Internacional História & Parcerias, ANPUH, Universidade Federal Fluminense, 2019. p. 7-16.
35. CASTRO, Ruy. Lírica, cosmopolita, meio bandida.Folha de S.Paulo, 9 set. 2015.
36. Parecer Técnico do Processo de Tombamento nº 1.279-T-88 – IPHAN.
37. CASTRO, Ruy. Lírica, cosmopolita, meio bandida. Folha de S.Paulo, 9 set. 2015.