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Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo
Pesquisa e colaboração: Cristiane Titoneli


Gamboa


Vista do Saco da Gamboa. Abraham Louis Buvelot. REPRODUÇÃO FOTOGRÁFICA PEDRO OSWALDO CRUZ. ACERVO CASA GEYER/MUSEU IMPERIAL/IBRAM
Vista do Saco da Gamboa. Abraham Louis Buvelot. REPRODUÇÃO FOTOGRÁFICA PEDRO OSWALDO CRUZ. ACERVO CASA GEYER/MUSEU IMPERIAL/IBRAM

Vocábulo de origem indígena, “gamboa” significa “pequeno lago artificial junto ao mar, que se enche de peixes com a preamar”. Era, portanto, o termo que melhor descreveria aquela enseada aos pés do Morro do Livramento margeada por uma faixa de areia branca onde se encontravam, esparsos, alguns casebres de pescadores tendo à sua frente um mar calmo e piscoso. Surgiu daí a denominação atribuída ao bairro que se desenvolveu nas franjas dos morros do Pinto e do Livramento, ocupando também a estreita faixa do litoral que contornava duas belas enseadas, conhecidas, no século XVIII, como Praia da Gamboa.

Nas encostas do Morro do Livramento, que separava este bucólico lugar do resto da cidade, existiam apenas grandes chácaras com poucas construções e aspecto rural. Numa delas, nasceu e viveu quando ainda menino o escritor Machado de Assis (1839-1908). O imortal acadêmico era filho de funcionários da casa e cresceu sob os cuidados de sua madrinha, a proprietária da chácara, Dona Maria José de Mendonça Barroso, falecida em 1845, em uma epidemia de sarampo.

Na primeira metade do século XIX, a única forma de chegar à Enseada da Gamboa era percorrendo o Caminho da Gamboa, que havia sido implantado no vale entre os morros do Livramento e o da Saúde, onde ficava o Cemitério dos Pretos Novos. Por isso mesmo, esse caminho, transformado em via urbana, recebeu o nome de Rua do Cemitério, atualmente denominada de Pedro Ernesto.

Apesar da precariedade do acesso, a beleza e a tranquilidade do lugar começaram a atrair algumas famílias mais abastadas, que construíram belos casarões ao longo da orla. Afastada do burburinho e da insalubridade das áreas centrais da cidade, a Enseada da Gamboa era ainda um lugar ideal para morar, pois, se por um lado desfrutava das vantagens oferecidas pelas áreas litorâneas, estava protegida do movimento do porto pela península formada pelo Morro da Saúde.

Foi também instalado nessa época, num canto da enseada e próximo à orla, o Cemitério dos Ingleses, iniciativa de Lord Strangford, nobre britânico que chegara ao Rio acompanhando a comitiva de D. João VI. Ao verificar que na cidade existiam apenas cemitérios católicos, adquiriu uma das chácaras e nela construiu as bases do British Burial Ground, onde, a partir de 1811, passaram a ser enterrados os europeus de fé protestante. O cemitério, que ficava na orla da baía, tinha até um cais próprio por onde podiam ser desembarcados corpos vindos de outros núcleos da região.

Maria Graham, viajante e escritora inglesa que aqui morou na década de 1820, assim descreveu o cemitério em seu diário de viagem: “Fui hoje, a cavalo, ao cemitério protestante, na Praia da Gamboa, que julgo um dos lugares mais deliciosos que jamais contemplei, dominando lindo panorama em todas as direções.”

Outra construção, do mesmo período, que permanece até os dias de hoje é o Hospital da Gamboa e sua igrejinha. Ambos foram construídos no alto do morro, por volta de 1840, quando Dr. Antônio José Peixoto – formado em Medicina em Montpellier e Paris – alugou uma antiga chácara para instalar uma casa de saúde.

A situação sanitária da cidade era dramática, e logo o médico passou a oferecer atendimento clínico e cirúrgico para viajantes marítimos, mantendo inclusive uma enfermaria para escravos. Em razão do grande número de pessoas doentes, Dr. Peixoto solicitou apoio financeiro à Imperial Academia de Medicina. E foi assim que, ao final de 1841, a conhecida Casa de Saúde do Doutor Peixoto pôde ser ampliada, transformando-se num pequeno complexo de vários prédios hospitalares no topo do Morro do Cal, hoje da Gamboa. Ocupando terreno privilegiado – de frente para a enseada, era bem ventilado, cercado por bela vegetação e isolado da cidade –, tinha condições ideais para a recuperação de pacientes com doenças contagiosas, notadamente a febre amarela, que teve a sua primeira grande epidemia em terras cariocas de 1849 a 1890.

Extremamente violenta, a epidemia infectou 55% da população total da cidade (166 mil habitantes), levando 4.160 a óbito. Logo em seguida, surgiram duas outras – a varíola e o cólera-morbo –, mas já encontraram o hospital mais preparado para tratar as doenças. Consta que, em 1852, o contra-almirante Dessoin, comandante em chefe da estação naval francesa no Brasil, impressionado com a eficiência e limpeza do estabelecimento, deu a ele o título de “Maison de Santé de la Marine Française”. Entretanto, em 1853, após novas graves epidemias, a Junta Central de Saúde “requisitou” a casa de saúde do Dr. Peixoto para integrá-la ao sistema de emergência para doentes contaminados por epidemias, sob o nome de Enfermaria N. S. da Saúde. O hospital, em estilo neogótico, continua na ativa até hoje, sempre com fins filantrópicos, agora administrado pela Santa Casa de Misericórdia.

Até meados do século XIX, esse trecho do litoral, que se estendia da Saúde até as imediações do Saco do Alferes, um braço de mar que entrava pela praia até alcançar alguns charcos ou lamaçais, o Mangue de São Diogo, ainda era de tal forma belo e pitoresco que serviu de tema para inúmeros artistas da época e mais atuais:

Mas as inundações dos solstícios de verão
Trouxeram para Mata-Porcos
todas as uiaras da Serra da Carioca
Uiaras do Trapicheiro
Do Maracanã
Do Rio Joana
E vieram também sereias de além-mar jogadas pela ressaca
nos aterrados da Gamboa28

O crescimento populacional da cidade e o incremento constante das atividades do porto, no entanto, logo impactaram não só a Gamboa, mas também a Saúde, sua vizinha. Essas terras, até então de baixo valor, passaram a ser fortemente cobiçadas. A encosta do Morro da Gamboa não era íngreme, o que facilitava a ocupação urbana. Portanto, em pouco tempo as chácaras foram sendo divididas em inúmeros lotes urbanos.

Quase simultaneamente, os belos casarões situados na orla da Gamboa foram sendo, aos poucos, adquiridos pelos grandes proprietários de chácaras das áreas centrais da cidade, agora na posição de homens de negócios ligados à atividade portuária que demandava áreas próximas à orla para novas instalações.

Não por acaso, um dos primeiros trapiches instalados no Morro da Saúde, em sua vertente voltada para a Gamboa, pertencia a Cândido Rodrigues Ferreira – o Ferreirinha –, proprietário de grande parte das terras do Morro da Saúde e negociante de pratarias.

O processo de transformação, no entanto, passou a ser mais intenso a partir de 1852, quando o Barão da Gamboa – maior proprietário de terras do local – promoveu a abertura de ruas e transformou em lotes urbanos locais antes ocupados por plantações de café, hortas e mangueiras.

Destacam-se, pela importância, a Rua do Saco do Alferes (atual Rua da América), que, cruzando o vale entre o Morro do Pinto e o Morro da Providência, e atravessando o Mangue de São Diogo (Cidade Nova), chegava até a Rua do Catumbi Grande (Marquês de Sapucaí). Paralela ao litoral, destacava-se a Rua da Gamboa, que já existia, mas foi ampliada para permitir sua integração ao cais da Saúde. Estavam assim implantados os acessos que ligavam aquela orla ao Centro da cidade e à zona portuária.

A construção de trapiches, depósitos e pontos de atracação intensificou-se em todo esse trecho do litoral, chegando até o Saco do Alferes, modificando não apenas a paisagem natural, mas também as características urbanas e culturais. Tinha início o processo de ocupação da região por atividades portuárias como sonhara o governo imperial desde 1871, quando então pensava em construir no local as Docas de D. Pedro II. Este sonho, no entanto, só começou mesmo a se concretizar no início do século XX, quando começam as grandes reformas de Pereira Passos, que iriam afetar novamente a área da Gamboa.

A suave cordilheira, que escondia sua laboriosa vida portuária, seria fortemente afetada, e os seus morros seriam cobiçados como local de moradia, principalmente pelos pobres. A ocupação do Morro da Providência seria a mais notável, pois trazia um novo elemento que iria marcar para sempre a paisagem física, cultural, econômica e social do Rio de Janeiro: as favelas.

Foi na Gamboa que se instalou a primeira favela carioca. Segundo diversas fontes, teria sido em 1897, quando, após derrotarem os rebeldes na Guerra de Canudos, liderada por Antônio Conselheiro, centenas de soldados voltaram da Bahia e acamparam aos pés do Morro da Providência, em local próximo ao Ministério da Guerra, para pressionar o Ministério a lhes pagar os soldos devidos. Buscavam recompensa por sua atuação no conflito – dinheiro e moradia –, conforme havia sido prometido. A história dos veteranos de Canudos acabou se transformando no “mito de origem” das favelas, embora elas já existissem antes. Segundo Lícia do Prado Valladares, durante algum tempo aguardaram que lhes fosse fornecido alojamento próprio, mas, com a indefinição por parte do governo, decidiram invadir, sem autorização oficial, a encosta do Morro da Providência, onde existia uma antiga chácara. Junto com suas mulheres, a maioria constituída por vivandeiras, como eram conhecidas as fornecedoras de mantimentos para as tropas em marcha, acabaram por ocupar, sem nenhum planejamento nem urbanização, grande parte do morro. Foram essas vivandeiras que, em 1901, promoveram a construção do oratório existente no alto do morro – tombado pelo IPHAN em 1986 –, onde entronizaram uma imagem de Cristo que haviam trazido do interior da Bahia.


28. BANDEIRA, Manuel. Mangue. In: ______. Libertinagem. 2. ed. São Paulo: Global Editora, 2013.