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Maria Pace Chiavari


O Moinho Fluminense, exemplo de arquitetura industrial


Sem acesso ao projeto material do primeiro estabelecimento, opta-se por uma reconstrução daquele através da leitura da construção atual. Sobre a soma dos terrenos adquiridos pelos irmãos Gianelli, é elevada uma edificação que, por se valer da posição privilegiada dos lotes, resulta de esquina. Enquanto uma fachada é voltada para a Rua da Saúde, hoje Rua Sacadura Cabral, a outra se defronta com o antigo Mercado da Harmonia, transformado em Praça da Harmonia e que, atualmente, responde pelo nome de Praça Coronel Assunção.

Na atual fachada da Rua Sacadura Cabral, em correspondência ao andar térreo do então estabelecimento, encontram-se restos do primeiro projeto do Moinho Fluminense. Trata-se da parede de tijolos maciços de feição inglesa com a sequência dos três grandes portais cegos, em arcos plenos, de reminiscência neoclássica. Ajudam a completar a primeira feitura dessa frente do prédio as representações do moinho do final do século XIX, início do século XX. De altura correspondente ao térreo do atual edifício, a antiga fachada era arrematada por três frontões em forma de triângulos agudos.

Prosseguindo na leitura da segunda fachada, nota-se o mesmo uso de tijolos maciços. A repetição desse material e da forma como ele é cada vez empregado sublinha a identidade desse projeto com a cultura inglesa. Foi na Inglaterra que primeiro se desenvolveu a relação entre arte e indústria, que leva aos renovados empregos de antigos materiais, como os tijolos à vista.55 Na argamassa dos tijolos utilizados no Moinho Fluminense, aliás, dizem ter sido misturado óleo de baleia para aumentar a resistência das paredes às frequentes vibrações das máquinas.56 Acerca da destinação, então atribuída à parte da construção de esquina de dois andares, devia servir de novo abrigo para a estrutura herdada da primeira indústria de moagem, uma vez esta última deslocada da Rua Larga de São Joaquim.

Na parte nobre da fachada que corria da Rua da Saúde até o mar, roubava a cena, e rouba até hoje, o prédio principal de seis andares. Suas elegantes feições se impõem sobre a simbólica continuidade construída entre os diferentes setores de produção, como engrenagens da mesma fábrica. Contribui para criar essa sensação de homogeneidade ao longo de toda a fachada a repetição da mesma composição de tijolos, como do igual modelo em arco abatido de janelas. Todavia, a diferença da altura e a ruptura artística e estrutural assumida por esse prédio em relação ao resto da construção encontram explicação no seu conteúdo. Por ser abrigo do complexo maquinário de moagem, importado da Inglaterra, esse edifício representa o coração da fábrica.

No precioso e elegante desenho de sua fachada, que se manteve intacta por todos esses anos, transparece o valor simbólico a ela atribuído pelo próprio autor do projeto, que o elegeu a efígie do estabelecimento. A riqueza da mencionada fachada, peculiar exemplo de cenografia urbana, está no jogo de contraposição entre cheios e vazios, obtidos pelo hábil uso da luz e de seus efeitos de claros e escuros. É possível observar isso no contraste entre a gravidade das partes laterais, em tijolos maciços aparentes, e a leveza do vazio criado no vão central da fachada. Nesse espaço oco, que se repete igualmente nos seis níveis, encontram lugar as passarelas de ferro cobertas que, em cada andar, conectam os dois lados da construção. Para a riqueza do resultado, contribui o grafismo dos desenhos presentes nos elementos em ferro, tanto dos arcos abatidos como dos parapeitos das passarelas. Trata-se de um dos primeiros exemplos, na arquitetura carioca, de uso de componentes em ferro importados do Reino Unido.57 Conclui a fachada amplo vazio em arco pleno, apoiado em pilares de altura de seis andares, centralizado e encimado pelo tímpano.

A trama dos percursos exigidos pelo próprio processo produtivo explica as diferentes formas assumidas pelas interligações existentes entre as edificações que compunham o Moinho Fluminense.

É exemplo disso o passadiço que, do edifício de cinco andares, leva diretamente à última construção, formada por um galpão. O seu uso como depósito é sugerido pelo tratamento de sua fachada, composta por pilares de tijolos alternados com estreitas aberturas verticais, para a luz e o ar entrarem. À conclusão do percurso, chega-se à beira do mar. Ali, junto à ponte, era posicionado o cais do moinho, onde eram descarregados os sacos de trigo que chegavam do exterior para serem carregados até os armazéns do moinho.



55. No Brasil, a produção de tijolos maciços inicia-se a partir da segunda metade do século XIX, e o uso desse material nas construções se torna, então, marco distintivo de progresso. TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da engenharia no Brasil: séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Clavero, 1994. p. 127.
56. Disponível em: <http://www.invencoesbrasileiras.com.br/argamassa-de-oleo-de-baleia/>. Acesso em: mar. 2021. Pesquisas mais recentes afirmam que, naquela época, o óleo de baleira teria sido substituído por óleo de outros peixes mais comuns, com a função de hidrorrepelente, em lugares onde haveria presença de água, como em terrenos à beira-mar.
57. TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da engenharia no Brasil: séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Clavero, 1994. p. 128.